A democratização da linguística pode muito bem ser considerada uma das metas das publicações de Marco Neves. A sua mais recente obra Palavras que o português deu ao mundo – viagens por sete mares e 80 línguas (Editora Guerra & Paz) é disso prova, ao oferecer ao leitor uma viagem à história de muitas palavras numa prosa solta e cativante que abandona o registo sério e formal dos seculares compêndios etimológicos feitos por e para especialistas e investigadores, sem, contudo, abdicar da seriedade e do rigor.
Neste registo inovador e muito próprio, o autor guia o leitor num texto que assume, de modo original, o hibridismo entre o género relato de viagens e entrada de dicionário, numa viagem que vai dos lugares às línguas, às palavras, à fonologia, às letras do alfabeto de diferentes línguas, desenvolvendo um percurso histórico que aponta e analisa os factos que conduziram às realidades linguísticas que hoje conhecemos. O leitor é, desta feita, guiado por entre os acontecimentos que determinaram a escolha de vocábulos, a sua significação ou a sua fonologia, testemunhando o percurso histórico das palavras, desde o proto-indo-europeu (nas suas formas recompostas) à transformação que sofreram em diversas línguas. Exemplo desta abordagem é o interessante relato que tem lugar no capítulo intitulado «Viagem a bordo da água» onde se explica o modo como da forma proto-itálica *akwā derivaram os vocábulos água (português), aigua (catalão), apă (romeno) ou eau (francês).
Na verdade, esta é uma obra que vai muito além da identificação das palavras que o português emprestou a outras línguas, pois empreende uma viagem que oferece ao leitor dados sobre a origem e o percurso de palavras pertencentes a outras línguas. Sabia, por exemplo, que o pronome inglês they tem origem víquingue? Pequenos pormenores que surgem a propósito do país/cidade onde o autor nos levou ou de uma história que se conta, que se coadunam na perfeição com o tom coloquial mantido com o leitor. As conversas são como as cerejas… E a digressão proposta leva a outras áreas como a do alfabeto, que abre, por exemplo, caminho à explicação da origem fenícia da nossa letra A.
Estamos, portanto, perante uma obra que convida a muitas leituras, que poderão inclusive não seguir a linearidade dos capítulos de uma obra que oferece muitos relatos, recheada de curiosidades, algumas relativas às palavras que o português, de facto, emprestou ao mundo: mēzu, lonsi, botan, pan e muitas outras que diferentes línguas adaptaram às suas necessidades de comunicação. Na obra, há ainda oportunidade de desfazer equívocos: não, o famoso arigato japonês não tem origem no nosso obrigado.
Palavras que o português deu ao mundo – viagens por sete mares e 80 línguas, uma obra que o leitor se sente obrigado a ler. Obrigada por isso, Marco Neves!
Cf. "Marmelade" é mesmo "marmelada"? E "verandah? Como português anda (ou não) nas bocas do mundo.
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