Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Queria aprofundar a origem e significado da palavra Burguel.

Existe um topónimo em São Brás de Alportel, Pátio do Burguel, atribuído por deliberação camarária de 27 de Março de 2007, na Acta n.º 8/2007. Contudo, é topónimo muito antigo, visto que já vem referenciado em sessão camarária de 15 de Setembro de 1916, como Rua do Burguel (actualmente já não existe este topónimo).

Muito obrigado.

[O consulente segue a antiga ortografia.]

Resposta:

As fontes impressas de que disponho nenhuma informação dispensam sobre a origem do topónimo Burguel. Contudo, na Internet, é possível encontrar um artigo de João Sousa, no blogue Opinião Literal, no qual se considera que burguel é também um substantivo comum: «[...] na tradição popular do sotavento algarvio, com duplo sentido: faz referência a um sítio no interior de povoações; e reporta gente de baixa condição social. É assim em S. Brás de AlportelLuz de Tavira e Fuzeta.» Segundo o mesmo autor, a palavra também se fixou como topónimo nas localidades mencionadas, como, aliás, confirma o próprio consulente em relação a S. Brás de Alportel.

Pouco mais consigo acrescentar sobre a origem do nome comum e topónimo, a não ser sugerir que parece tratar-se de um diminutivo de burgo (sobre a origem deste vocábulo, ver Textos Relacionados), formado por sufixação de -el, do sufixo latino vulgar -ELLU. Por outras palavras, burguel/Burguel viria a ser o mesmo que «pequeno burgo», talvez entendido como núcleo urbano subordinado a outro mais vasto. Note-se ainda que, segundo o Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora (disponível na Infopédia), a forma afixal -el é «(um) sufixo nominal, de origem latina, que ocorre em topónimos e, por vezes, em substant...

Pergunta:

Mãepai, etimologicamente, são provençalismos, arabismos, latinismos arabizados (ou berberizados?), “infantilismos” (por apócope da 2.ª sílaba de madre e padre e ditongação da vogal da 1.ª sílaba?), ou outra coisa?

Resposta:

São palavras patrimoniais de origem latina vulgar, ou seja, são o resultado do latim vulgar MATRE e PATRE.

As sequências etimológicas mais aceites são como seguem:

(1) MATRE > *made > *mae >mai> mãe

(2) PATRE > *pade > *pae > pai

As formas hipotéticas *pade e *made teriam aparecido por sonorização de T latino intervocálico e queda da consoante vibrante configurando uma articulação característica da linguagem infantil (cf. Dicionário Houaiss, s. v. mãe e pai; ver também José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa). Teria depois ocorrido a síncope de [d] intervocálico e resolução do hiato "ae" no ditongo "ai". No caso de mãe, há a considerar ainda um fenómeno fonético adicional que é a nasalização do ditongo por efeito da consoante nasal bilabial [m].

Importa destacar que pai é forma comum ao português e ao galego, e que mãe é (ou era) também mai em certos dialetos portugueses e galegos (ainda que na Galiza se use preferencialmente nai, que tem origem em mai).

Sobre a origem latina não haverá dúvida – não se trata de provençalismos, nem de arabismos.

Apesar de no domínio occitânico, mais especificamente no gascão (sudoeste da frança), se registarem as formas pai e mai,1 é muito provável que estas formas tenham surgido de forma independente (cf.

Pergunta:

Sou natural de Santa Maria da Feira e sempre utilizei a palavra "quantal", que exprime a ideia de «daqui a pouco», mas unicamente em situações hipotéticas, ou para efeitos de exageração, como no exemplo: «Dá de comer ao cão, que quantal o bicho morre-me de fome.» Gostaria de saber se este é uma palavra típica do Norte de Portugal e qual a forma correta de a escrever, no caso de haver uma: talvez se escreva "cantal".

Resposta:

Não me foi possível encontrar registo lexicográfico ou outro da palavra em questão. No entanto, posso confirmar que a forma "quantal" tem uso regional, ao que parece, numa região a norte de Aveiro, continuando o distrito do Porto. Com efeito, para além do caso descrito pelo consulente, atesta-se o uso de "quantal" como uma aglutinação da expressão «quando tal», no falar de S. João de Sobrado (Valongo, Porto) – ler comentário no blogue Estórias da Minha Terra. Pela grafia que o consulente toma por hipóteses, é possível inferir que a palavra quanto, que se transcreve foneticamente como [ˈkwɐ̃tu] no português padrão e em muitas variedades regionais de Portugal, é também pronunciada com perda da semivogal [w], como acontece maioritariamente nos dialetos galegos e na sua norma-padrão: "canto", donde «canto tal» e "cantal".

Registe-se que se atesta igualmente  o emprego de "sinquetal", outra aglutinação, de «assim que tal» – cf. blogue Metakritico, em janeiro de 2012. 

Pergunta:

É correto dizer «O homem de que te falei» / «O homem do que te falei», ou devo dizer exclusivamente «o homem do qual te falei»?

De igual maneira, posso usar indiferentemente as suas formas no seguinte caso, ou usar o que com preposição é incorreto/arcaico/extremamente formal?

«A pessoa com a qual trabalho.» / «A pessoa com a que trabalho.»

Agradeço muito a resposta.

Resposta:

Em português, as formas corretas são as seguintes (destacadas a negrito):

(1) «O homem de que falei.»

(2) «O homem do qual te falei.»*

Do mesmo modo, em relação à segunda frase em questão:

(3) «A pessoa com que trabalho.»

(4) «A pessoa com a qual trabalho.»*

Nestas construções não se empregam nem do/da que, nem com o/a que, ou seja, não é possível traduzir literalmente o castelhano «del/ de la que» ou «con el/la que».

Note-se que, em castelhano, existem os chamados relativos complexos formados pelo artigo definido e os relativos cual ou que (cf. Nueva Gramática de la Lengua Española – Manual, Real Academia Espanhola, 2010, pág. 837). Os relativos complexos em que participa cualel cual/la cual/lo cual/los cuales/las cuales – são na maioria facilmente transpostos em português como o qual/a qual/os quais/as quais. Contudo, os pronomes relativos complexos constituídos por queel que/la que/lo que/los que/las que –, em que el, la, lo, los e las são artigos definidos, não pronomes, não encontram correspondente exato em português (idem, ibidem). Com efeito, a língua portuguesa não permite formas como «a que» (em que a seria um artigo definido) depois de preposições e rejeita frases como *«a pessoa com a que trabalho» (o * indica agramaticalidade), cuja configuração correta é ...

Pergunta:

Tenho uma questão relacionada com as seguintes frases-exemplo: «Vê-se bem que o barco está à deriva»; «Isso faz-se muito bem»; «Conduz-se muito bem durante o dia». Qual a origem/lógica do uso do -se nos casos mencionados? Trata-se do uso de verbos reflexos (i.e. ver-se, fazer-se, conduzir-se)?

Confesso que a mim não me parece que seja o caso. Mas também não encontro uma explicação alternativa. Será que me podem elucidar sobre esta questão?

Obrigado.

Resposta:

O desenvolvimento do se reflexo como marca da voz passiva ou da indeterminação do sujeito é uma característica comum às línguas românicas, resultado de uma substituição bastante antiga, a de certas formas da conjugação passiva do verbo latino pelo uso do pronome reflexivo se no latim vulgar.

Assim, no latim, havia tempos que tinham formas sintéticas para a voz passiva. Por exemplo, para o português «sou amado», o latim tinha a forma amor; e para «era amado», havia a forma amabar. Em latim, a voz passiva tinha também formas analíticas para certos tempos: amatus sum significa «fui amado». Esta conjugação passiva foi substancialmente alterado no latim tardio e no latim vulgar; com efeito, toda a conjugação passiva passou a ter apenas forma analíticas: amatus sum passou a significar «sou amado», e amatus fui, «fui amado».

Porquê referir a estrutura da voz passiva em latim? Pela razão de a conjugação sintética permitir o uso da 3.ª pessoa em sentido indeterminado: amatur tanto podia significar «é amado» como «ama-se». Acontece que este uso da passiva sintética foi substituído – por um processo que ainda não está completamente esclarecido1 – por uma construção com o pronome reflexo: lauatur ~ se lauat (= «é lavado», «lava-se»). Nas línguas românicas, veio a prevalecer a construção com o pronome reflexo.

 

1 Leiam-se as primeiras páginas do artigo Construções com se. Mudança e var...