Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A noção e a relação de período, frase e oração, comummente aceites, são um equívoco.

O período é do nível textual. Quando descemos ao nível da sintaxe, o período sai de cena e entra a frase, entendida como oração. Esta é que é o objecto específico da análise sintáctica. O período limita-se a ser simples ou composto, conforme tem uma ou mais frases/orações. Quando dizemos que alguém escreve frases muito longas, deveríamos dizer períodos muito longos, porque estamos a fazer análise textual e não análise sintáctica.

Incoerentemente, quem identifica frase com período define-os de forma diferente, aproximando muito mais a frase da oração do que do período. A pobre da frase anda aos trambolhões entre o período e a oração, porque ninguém lhe delimita o âmbito como entidade significante. É tudo e não é nada!

Entendendo-se frase como período, no caso de ser composta por orações coordenadas, seria possível transformá-la em períodos, não acontecendo o mesmo no caso de ser composta por orações subordinadas. Então, como podem ser idênticas duas noções que nem sequer são reversíveis?

E não são reversíveis, porque o período pode ser composto, mas não complexo, enquanto a frase pode ser complexa, mas não composta. O período pode ser simples ou composto; a frase só pode ser simples ou complexa. Ao identificarmos frase com período, deixamos de ter a possibilidade de distinguir frase complexa de frase composta, que são coisas muito diferentes. Ou seja, confundimos orações complexas com um complexo de orações.

Todo este imbróglio resulta de um erro muito frequente nos gramáticos, que é a mistura dos planos, o erro de perspectiva. Neste caso, misturam o último degrau da estrutura textual (o período) com primeiro da estrutura sintáctica (a frase).

Os critérios enunciados pelo consulente são claros e fazem todo o sentido. Só tenho dúvidas quanto a eles serem definidos tal como se pretende generalizá-los no ensino básico e secundário em Portugal. Pelo sim, pelo não, recordo a definição dos termos frase, oração e período no Dicionário Terminológico:

frase: «Enunciado em que se estabelece uma relação de predicação, que contém, no mínimo, um verbo principal, podendo ainda incluir elementos como o sujeito, complementos seleccionados, predicativos e eventuais modificadores

oração: «Designação tradicional para os constituintes frásicos coordenados e subordinados contidos em frases complexas

período: «Cada uma das partes constituintes de um

Pergunta:

Consultei [...] esta resposta.

Talvez pelo facto de as minhas línguas maternas — o espanhol e o catalão — estarem muito sistematizadas, em grande parte para facilitar a vida de quem escreve, não pude, depois de ler a mencionada resposta, deixar de me perguntar se tem algum sentido escrever "cor-de-rosa" com hífen e "cor de laranja", "cor de tijolo" ou "cor de vinho" sem o mesmo. Pessoalmente, acho que não e apenas confunde e dificulta a vida, para além de me parecer completamente arbitrário, mas gostaria de saber a sua opinião de linguistas especialistas em português, que vêem a língua desde dentro, e não de fora como eu.

Muito obrigado.

Resposta:

Quem se preocupa com o carácter sistematizado — para aproveitar o termo do consulente — da ortografia do português (a qual tem uma história institucional a vários títulos diferente da espanhola ou da catalã) também se vê em dificuldades ao procurar perceber o critério de aplicação do hífen em cor-de-rosa e da sua ausência em cor de vinho no n.º 6 da Base XV do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 1990), sobre locuções que incluem elementos de ligação (p. ex., fim de semana, sala de jantar).1

Acontece que tal critério, enunciado de forma simplificada no AO 1990, mantém afinal um preceito já antigo, existente na Base XXVIII do Acordo Ortográfico de 1945 (AO 1945), onde se distinguiam os compostos hifenizados «em que o conjunto dos elementos, mantida a noção da composição, forma um sentido único ou uma aderência de sentidos» (exemplos: «água-de-colónia, arco-da-velha, bispo-conde, brincos-de-princesa, cor-de-rosa (adjectivo e substantivo invariável)...») das locuções do vocabulário comum, que incluem as «[...] locuções adjectivas: cor de açafrão, cor de café com leite, cor de vinho [...]». A diferença entre cor-de-rosa e cor de vinho era, portanto, semântica, como explica com mais pormenor Rebelo Gonçalves no seu Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa&#...

Pergunta:

Está completamente errado escrever designadamente entre vírgulas?

Resposta:

Não, sobretudo porque há expressões sinónimas empregadas entre vírgulas.

Normalmente este advérbio, como nomeadamente, é usado sem vírgula à direita, «[...] para acrescentar informações mais específicas, detalhadas ou pormenorizadas ao que acabou de ser dito» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa»):

1. «[A] caça a cavalo foi proibida em numerosos países da Comunidade Europeia, designadamente na Alemanha, na Grécia, na Itália, na Holanda, na Dinamarca e no Grão-Ducado do Luxemburgo» (idem).

Contudo, verifica-se que existem locuções sinónimas que podem ser usadas entre vírgulas — por exemplo, «em particular»:

2. «As palavras foram dirigidas, em particular, aos correspondentes da imprensa estrangeira» (Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintáctico da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho).

Outra locução semanticamente próxima, «em especial», ocorre habitualmente entre vírgulas:

3. «A ementa do jantar foi escolhida, em especial, para os convidados estrangeiros» (idem).

4. «Tal situação exige do Governo e, em especial, desta Secretaria de Estado, uma dinamização e um espírito novo.»

Note-se que o valor semântico de designadamente é ainda interpretável como próximo do de «por exemplo», que costuma aparecer depois e antes de vírgula:

5. «[A] caça a cavalo foi proibida em numerosos países da Comunidade Europeia, por exemplo, na Alemanha, na Grécia, na Itália, na Holanda, na Dinamarca e no Grão-Ducado do Luxemburgo.»

Assim:

a) quando pormenoriza uma expressão nominal, recomenda-se o uso de

Pergunta:

Na frase «A raposa comeu o queijo ao almoço», consideramos «ao almoço» como modificador do grupo verbal, uma vez que não faz parte da estrutura argumentativa do verbo. E na frase «A raposa comeu o queijo ao corvo»?, como classificamos a expressão «ao corvo»?

Resposta:

Trata-se de um constituinte que me parece ter difícil enquadramento numa descrição que apenas contraste complementos verbais com modificadores do grupo verbal. Com efeito, a expressão «ao corvo» tem uma relação de interesse ou posse com «o queijo», sendo equivalente a «do corvo» («comeu o queijo do corvo») ou «que o corvo queria» («comeu o queijo que o corvo queria»). Do ponto de vista do Dicionário Terminológico (DT), eu diria que é um complemento indireto, mas não vejo esta análise claramente corroborada pelo próprio DT.

No âmbito da gramática tradicional, diz-se que este aparente complemento indirecto apresenta uma função e uma semântica próprias, conforme descrição de Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (Editora Lucerna, Rio de Janeiro, 2002, pág. 425; mantém-se a ortografia original):

[A]parecem sob forma de objeto indireto, nominal ou pronominal, alguns termos que não estão direta ou indiretamente ligados à esfera do predicado: são os chamados dativos livres, representados oelos seguintes tipos:

a) dativo de interesse (dativus commodi et incommodi) — é aquele mediante o qual se indica de maneira secundária a quem aproveita ou prejudica a ação verbal:

Ele só trabalha para os seus.

Ele ligou-me amavelmente a luz [...].

Este dativo fica muito próximo da circunstância de fim ou proveito (beneficiário).

b) dativo ético — é uma variedade do anterior, muito comum da linguagem da conversação, e representa aquele pelo qual o falante tenta captar a benevolência do seu interlocutor na execução de um desejo:

Não me reprovem estas idéias! [...]

c) dativo de posse — exprimem o possuidor:

O médi...

Pergunta:

Pela lógica, um acordo ortográfico serve entre outras coisas para normalizar a língua. Como se entende então que passe a haver um elevado número de palavras com múltiplas grafias possíveis em Portugal —  ex.: aspecto e aspeto, caracteres e carateres, facto e fato, sector e setor, ceptro e cetro, concepção e conceção, corrupto e corruto, recepção e receção? Não trará isto ainda mais confusão desnecessária à língua? Porque não se obriga à escrita de uma única grafia? Não conheço nenhuma língua entre as mais faladas do mundo que admita tal enormidade. Qualquer dia nem vale a pena ter um dicionário para consultar a grafia correta das palavras se tudo começa a ser possível. Para isso voltemos aos tempos em que cada qual escreve como lhe apetecer sem qualquer regra, sempre seríamos mais coerentes.

Resposta:

Aceito o desagrado do consulente em relação às duplas grafias instauradas pelo Acordo Ortográfico de 1990. Trata-se de uma crítica compartilhada por muitos que não vou comentar nem aqui rebater. Sendo assim, respeito o desabafo expresso na pergunta, permitindo-me, no entanto, trazer algumas achegas para esclarecimento de algumas afirmações aí feitas:

1. As duplas grafias não são uma novidade nos textos normativos da ortografia, porque, em Portugal, durante a vigência do Acordo Ortográfico de 1945, havia (e continua a haver) a possibilidade de escrever "ou" como "oi" de modo a observar uma pronúncia alternativa: touro/toiro, couro/coiro, ouço/oiço. Por outras palavras, pode ser desejável que, para cada palavra, se estabeleça uma única grafia, mas esse desiderato nem sempre tem sido alcançável.

2. A existência de duplas grafias relativas às chamadas consoantes mudas é uma novidade em Portugal, mas não é no Brasil, onde, ao abrigo do Formulário Ortográfico de 1943, já os dicionários admitiam pares como seção/secção. Estas oscilações gráficas (que, no caso, reflectem oscilações fónicas) não são desconhecidas das grandes línguas que usam o alfabeto latino: o inglês conhece-as como variação geográfica, como revela a consulta dos dicionários mais recentes, que passaram a incluir as variantes gráficas americanas (center, harbor, curb) ou de outras proveniências ao lado das britânicas (centre, harbour<...