DÚVIDAS

Ainda o verbo bastar

Cumprimento-os por este belíssimo site de auxílio a tantos amantes da língua portuguesa. Quanto tenho usufruído dele!

Minha dúvida recai sobre o verbo bastar. Em muitas situações, mesmo quando o utilizamos como intransitivo, ele parece pedir um complemento. Exemplos:

a) «Bastou ela ir embora para ele voltar.»

b) «Bastou o sol surgir, que as ideias também nasceram.»

c) «Bastou que o meu pai falasse, e todos se manifestaram.»

Estão essas frases acima corretas? Pode-se usar o verbo bastar seguido da preposição para ou das conjunções que ou e?

Há exemplos parecidos no Aurélio, Houaiss e Luft (Dicionário Prático de Regência Verbal), mas nada muito esclarecedor.

Peço-lhes ajuda.

Resposta

O Ciberdúvidas agradece as suas palavras simpáticas!

Quanto aos exemplos que apresenta, são muito interessantes e, cada um deles, um verdadeiro desafio! Antes de mais, importa dizer que o verbo bastar é, frequentemente, construído com o sujeito posposto, como acontece nos exemplos que apresenta e que repito:

a) «Bastou ela ir embora para ele voltar.»
b) «Bastou o sol surgir, que as ideias também nasceram.»
c) «Bastou que o meu pai falasse, e todos se manifestaram.»

Do ponto de vista dos complementos que exige, o verbo pode ser:

Intransitivo, como no exemplo de Aurélio: «Não basta o prejuízo; há ainda por cima o sofrimento.»

Transitivo indirecto: «Basta-lhe o pouco que tem.»

Transitivo indirecto e oblíquo (ou seja, completado através de uma preposição, sem que o complemento assim formado possa ser considerado indirecto): «Pouco lhe bastará para esta viagem.» Este exemplo ilustra em Celso Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal, 8.ª ed., São Paulo, 2002, o facto de o verbo ser transitivo indirecto, mas creio que o verbo só fica completo com o complemento introduzido pela preposição para.

Transitivo oblíquo: «Basta que ele o diga para eu acreditar.» Exemplo do Dicionário de Verbos e Regimes, de Francisco Fernandes, 44.ª ed., S. Paulo, Globo, 2003, onde se fala de transitivo relativo.

Na alínea b), o complemento do verbo é introduzido pela conjunção de valor final que equivalente a para que. De facto, tanto em a) como em b), o valor veiculado pelo complemento do verbo é o valor final, ou de fim. O exemplo c) é, dos três, o mais interessante, porque temos uma conjunção coordenativa copulativa na qual pressinto algum valor final também.

Partindo dos exemplos em apreço, poderemos dizer que o verbo bastar é extremamente rico no tipo de relações sintácticas que estabelece, mas nas quais prevalece em termos semânticos o valor de fim.

Com efeito, em a) estamos perante um complemento oblíquo, constituído por uma oração infinitiva final (como se estivéssemos perante uma oração subordinada adverbial); em b) temos de novo uma oração de valor final, introduzida por que (parecendo mesmo uma completiva…). Para culminar, em c) a relação sintáctica estabelecida é de coordenação, mas o valor continua a ser final, e as duas frases mantêm uma relação que não é de coordenação típica mas, sim, de subordinação.

Na prática, em todos os exemplos, o complemento poderia ser introduzido por uma conjunção final, que, todavia, não introduz uma oração subordinada adverbial, uma vez que ela é necessária para completar o sentido do verbo bastar, face ao qual desempenha a função de um complemento oblíquo:

a.1) «Bastou ela ir embora para ele voltar/que ele voltasse
b.1) «Bastou o sol surgir, para que as ideias também nascessem/para as ideias também nascerem
c.1) «Bastou que o meu pai falasse, para todos se manifestarem/que todos se manifestassem

Em síntese, sendo embora verdadeiros desafios de análise, considero as frases acima genialmente correctas.

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