DÚVIDAS

Safra-nafra e escargo

Li recentemente o livro De Deus e do Homem, publicado em 1945 pela Bertrand. Trata-se de uma coletânea de textos de Pascal, escolhidos, prefaciados e traduzidos por Dinis da Luz. Nela, a dado passo refere-se:

«E assim lhes dão escargos e negócios que os põem numa safra-nafra desde o romper do dia» (p. 154).

Sobre esta frase tenho duas questões:

Nunca ouvi ou li a palavra safra-nafra mas pelo contexto parece-me que o seu sentido será equivalente a «lufa-lufa». Atendendo a que safra significa «grande atividade ou trabalho intenso», «afã» ou «azáfama», será que poderá ter surgido, por via onomatopaica, «safra-safra», e depois, por corruptela, «safra-nafra», ou o «nafra» ali será apenas uma gralha?

Também nunca me deparei com a palavra «escargo» que parece ali significar encargo, será uma outra forma de grafia da palavra «encargo», até porque «descargo» significa «pagamento de um encargo», ou apenas uma gralha?

Podem esclarecer, s.f.f.?

Muito obrigado.

Resposta

A expressão safra-nafra figura, como bem diz o consulente, na tradução de parte da recolha Pensées de Blaise Pascal (1623-1662), numa tradução de Dinis da Luz1 (De Deus e do Homem, Lisboa, Bertrand Editora, 1945). A frase em questão encontra-se, por exemplo, na língua original, numa passagem disponível na página Les Pensées de Pascal, no fragmento Divertissement n.° 7 / 7. O texto traduzido aparece mais tarde numa página do jornal O Vilaverdense, em 1957.

A expressão safra-nafra ocorre também num outro texto, também dos anos 50 do século passado, num texto do escritor brasileiro Rodrigo de Mello, que o publicou em Atlântico. Revista Luso-Brasileira (p. 95):

«José Cunha estrenoitou-se ao chamamento brusco da alvorada (andava já, à roda dele, a safra-nafra das abluções resfolegadas e do enfarpelar dos demais), pensando que o soquete ríspido do professor a despertá-lo entrasse na sequência dos maus tratos conducentes a fazê-lo despir.» Rodrigo de Mello, Menino Longe (capítulo do romance Colégio Amarelo).»

O significado de safra-nafra será o que propõe o consulente, e é plausível que a sua génese seja a aventada na pergunta. Observe-se, porém, que não foi possível encontrar registos dicionarísticos da expressão nem menção noutras fontes que permitam dar-lhe enquadramento e comentá-la com segurança.

Quanto à forma escargo é possível que seja variante de encargo, e o contexto favorece essa interpretação, até permitindo sugerir que escargo seja uma gralha. É provável, mas convém assinalar que escargo pode também ser variante de descargo, o mesmo que desencargo.

Note-se que des- tem regionalmente a variante es-, em casos como o das variantes desperdiçar e esperdiçar. Esta variação é comentada no Dicionário Houaiss na entrada dedicada a es-, que «[...] em alguns casos, [...] equivale ao prefixo des- (ver): escabelado/descabelado, esfazer/desfazer, esperdiçar/desperdiçar [...].» Por outro lado, desencargo tem, entre outras aceções, a de «cumprimento de um encargo» (ibidem), o que possibilita supor que o tradutor concebeu os trabalhos ou problemas da vida como a tarefa de os realizar e, nesta perspetiva, tornar-se-á legítimo optar por descargo e por um vocábulo não atestado dicionaristicamente com a forma "escargo". Esta é uma hipótese que parece frágil, justamente pela falta de registos da forma "escargo". Além disso, a palavra do original francês é charge (ocorre no plural charges), vocábulo que frequentemente se traduz por encargo.

Sendo assim, para a tradução portuguesa ser coerente, impõe-se que escargo esteja por encargo, no sentido de «trabalho, responsabilidade».

 

1 Dinis da Luz (1915-1988) era natural de S. Miguel e sacerdote católico.

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