DÚVIDAS

O pretérito perfeito composto e os verbos ir e vir

Li no livro "O aspecto em português" por Sônia Bastos Borba Costa que o verbo ir não pode ser auxiliar de perífrase imperfectiva no Pretérito Perfeito Composto e que nesses casos só caberia o verbo vir. Por exemplo, em vez de «*Eu tenho ido lendo»" ocorre «Eu tenho vindo lendo». Em vez de «*Tem ido sendo lido» ocorre «Tem vindo sendo lido».
Não obstante, encontrei na Internet exemplos com o verbo ir como auxiliar:
«1. O FÓRUM PRIVADO BRAVENET é protegido com palavra-passe, e isso é resultado da experiência que se tem ido recolhendo em outros “sites” e fóruns espalhados um pouco por todo o mundo.
2. Diante dos baixos preços dos nossos produtos, provocados pelos maus governos de Salinas, Zedillo e Fox, a nossa situação e as condições de vida têm ido piorando.
Os exemplos da Internet são errados? Seria melhor com «se tem vindo recolhendo» e «têm vindo piorando»?

Resposta

Se considerarmos o tempo presente como um ponto na linha do tempo e se pensarmos na progressão dessa linha em relação em passado, talvez possamos compreender porque se deveria usar o verbo vir e não ir.
Se uma acção está incompleta no presente, ela teve início num outro ponto da linha do tempo situado algures no passado, progrediu em direcção ao presente e vai continuar a progredir em direcção ao futuro. Essa acção, à medida que se vai realizando, vem-se aproximando do presente. Não se afasta, como poderia interpretar-se com a utilização do verbo ir, que implicaria o início no presente e um afastamento progressivo em direcção ao passado.
A descrição feita no parágrafo anterior procura ilustrar a lógica que talvez subjaza à defesa de que o auxiliar deve ser o verbo vir e não ir. Mas a lógica da evolução de sentidos de uma língua nem sempre é tão linear assim. Além disso, o Pretérito Perfeito Composto (PPC) não designa propriamente uma acção do passado. Trata-se de um tempo verbal que veicula uma ideia de incompletude e de repetição, ou iteratividade.
Do meu ponto de vista, é o contexto, associado às características do verbo principal, que vai definir qual o verbo a utilizar como auxiliar. No caso dos dois exemplos apresentados pelo consulente eu utilizaria o verbo vir, mas não utilizaria a construção que sugere. Diria «se tem vindo a recolher» e «têm vindo a piorar». Reconheço, no entanto, que a construção da perifrástica com a preposição a seguida de infinitivo não é a preferida na variante brasileira, contrariamente ao que acontece em Portugal. No entanto, nas construções em apreço, seria mais adequada e de mais agradável sonoridade. Poder-se-ia ainda alterar a expressão verbal e dizer apenas «se tem recolhido» e «têm piorado», uma vez que o PPC já contém em si a noção de continuidade e de repetição da acção. Se se pretendesse intensificar mais a ide[é]ia de continuidade e de repetição, seria sempre possível recorrer a um advérbio ou locução adverbial: «se tem recolhido» ficaria, por exemplo «se tem recolhido sistematicamente» e «têm piorado» poderia originar «têm piorado gradualmente (ou abruptamente…)».
Note-se que não considero incorrectos os exemplos apresentados. Apenas prefiro outras formas de estruturar a mesma ideia. 

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa