O plural dos substantivos compostos é matéria muito interessante, pois leva à reflexão sobre a formação da palavra, a relação que os elementos que a constituem estabelecem entre si e o contributo de cada um para o significado da palavra.
Assiste-se, hoje em dia, a uma prática de aceitação acrítica das ocorrências, havendo, inclusivamente, dicionários de renome que optaram por, em caso de alguma frequência de utilização pelos falantes comuns da língua, registar dois plurais para a mesma palavra.
Ora, não sendo esse o nosso entendimento – consideramos que quem nos consulta quer saber qual a perspectiva que consideramos dever ser seguida, e porquê –, defendo que o plural de decreto-lei é decretos-leis.
Esta é uma daquelas palavras que suscita dúvidas, pois é formada por dois substantivos (ou nomes).
No caso de palavras compostas formadas por dois substantivos, há duas situações a referir.
1.ª Há palavras cujo primeiro substantivo se constitui como o núcleo, pois contém a essência do significado da palavra, exprimindo o segundo uma relação de fim, de semelhança ou de limitação da significação do primeiro. Nestes casos, apenas o primeiro substantivo leva a marca do plural.
Exemplos:
a) navio-escola (navio utilizado para se ensinar a arte da navegação)
navios-escola
b) bomba-relógio (bomba cujo detonador é accionado através de um dispositivo de relógio) )
bombas-relógio
c) governo-sombra (conjunto de dirigentes da oposição que seguem a actividade do governo, cada um documentando-se sobre uma determinada pasta)
governos-sombra
d) homem-rã (mergulhador; homem com um dispositivo nos pés que faz lembrar as patas das rãs) )
homens-rã
e) filho-família (filho de família rica, de estrato social elevado, que geralmente não tem uma profissão).
filhos-família
2.ª Há palavras cujos substantivos constituintes contribuem em pé de igualdade para a construção do significado da nova palavra, não assumindo nenhum deles protagonismo em relação ao outro.
Exemplos:
a) surdo-mudo — surdos-mudos (a pessoa tanto é surda como muda)
b) couve-flor — couves-flores (a planta tanto é uma couve como uma flor, pois é constituída por uma inflorescência — conjunto de flores —, e é mesmo a inflorescência branca que é apreciada na restauração, e não as folhas verdes que a envolvem)
c) decreto-lei — decretos-leis (o diploma tem simultaneamente as características de um decreto e de uma lei)
No caso da palavra decreto-lei, não se trata de um decreto que funciona como lei1, mas de um diploma específico, que, no essencial, é uma lei a seguir, dado o seu poder e abrangência, só que este diploma é emanado do Poder Executivo (Governo), e não da Assembleia da República, órgão do Poder Legislativo. Assim, os elementos lei e decreto contribuem com o mesmo peso para a construção do significado da palavra — a natureza essencial do diploma e a sua autoria e funcionalidade (os decretos-leis têm funcionalidade diferente das leis emanadas da Assembleia da República) —, pelo que flexionam ambos.
1Sobre a diferença entre uma lei e um decreto-lei, veja-se a resposta anterior sobre «O plural de decreto-lei, de novo».