DÚVIDAS

Valores das orações conformativas

Frequentemente, vejo em petições processuais a seguinte estrutura frasal:

Oração 1 (com sentido negativo), + [,] como + oração 2 (com sentido positivo e oposto à oração 1)

1) Aqui vai um exemplo para tornar a ideia mais clara:

«O Sr. Márcio não possui quaisquer poderes estatutários ou administrativos na Empresa X, muito menos poderes para receber citação, como alega a Requerente.»

O sentido acima pretendido é o de que a requerente afirma algo, mas a realidade dos fatos (segundo a requerida, autora da frase em questão) é diferente desse algo. Entretanto, lembro-me de certa vez, ainda nos tempos de escola, em um livro didático, ter lido que períodos com tais estruturas produzem ambiguidade: no caso, é tanto possível a leitura de que (i) a Requerente alega que o Sr. Márcio possuiria algum poder estatutário, etc., como a de que (ii) a Requerente alega, em concordância com a parte autora da frase, que o Sr. Márcio não possuiria quaisquer poderes estatutários, etc.

No exemplo aqui discutido, essa ambiguidade seria evitada:

a) com a utilização do diferentemente (no sentido pretendido): «O Sr. Márcio não possui quaisquer poderes estatutários ou administrativos na Empresa X, muito menos poderes para receber citação, diferentemente do que alega a Requerente»;

b) com a anteposição da oração subordinada à principal (no sentido alternativo): «Como [Conforme] alega a Requerente, o Sr. Marcio não possui quaisquer poderes estatutários ou administrativos na Empresa X, muito menos poderes para receber citação.»

O motivo por que faço esta postagem é que pesquisei incessantemente sobre esse tema da ambiguidade do uso do como, mas não encontrei resultados que correspondessem ao caso aqui apresentado; e, do mesmo modo, tentei pesquisar essa dúvida inserindo as classificações sintáticas das orações (que acredito serem as corretas), conforme consta no título, mas igualmente não fui bem sucedido em encontrar respostas. Assim, as dúvidas seriam as seguintes:

1 – No exemplo, há de fato uma ambiguidade?

2 – A justificativa para tal ambiguidade seria a polissemia da conjunção como, que pode tanto representar modo (equivalendo, no exemplo, a diferentemente), quanto representar conformidade?

3 – Por que esse assunto ainda não foi pesquisado na Internet? Ou eu apenas procurei mal?

Muito obrigado!

Resposta

A análise proposta pelo consulente é adequada.

A questão levantada situa-se na discussão do valor conformativo e do valor desconformativo das orações subordinadas adverbiais conformativas. A ambiguidade da oração introduzida por como, após a subordinante, é, por exemplo, mencionada de forma muito pontual num trabalho de linguística defendido na Universidade de Lisboa1:

«Por fim, resta salientar o curioso caso em que a desconformidade é marcada pela adjunção de uma estrutura conformativa a uma oração subordinante cujo predicado é negado [...]:

(127) O João não teve nota máxima no exame, como eu previ (que acontecesse).

O valor desconformativo é obtido mais indiretamente, através da negação de uma situação do mundo real, contrastando com e.g. a previsão de que isso acontecesse. O complemento do predicado da adjunta equivale à subordinante, excetuado o valor de negação (eu previ [que o João tivesse nota máxima no exame]). Nestes casos, pode surgir uma ambiguidade com a interpretação conformativa – eu previ [que o João não tivesse nota máxima no exame], facto que aqui não explorarei.

(128) «Não será em 1993, como previsto inicialmente, que as empresas comunitárias produtoras de leite poderão fornecer as escolas portuguesas deste complemento alimentar.» (CETEMPúblico, par=ext138454-soc-92b-4) (129)

«Por outro lado, até ao momento não houve alterações nas chefias dos ministérios encarregados da segurança e da ordem pública, como se previa que acontecesse (…)» (CETEMPúblico, par=ext976871-pol-96a-1)»

Note-se, porém, que, fora da área especializada da linguística, não achamos referência a este caso em gramáticas descritivas tradicionais.

 

1 Ana Rita Vargas Valadas Pereira, Sobre a expressão da Conformidade e da Semelhança no Português, Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2014, p. 37

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa