O problema linguístico é fundamental em Timor, porque está em questão a própria identidade do novo país. Deverá ser adoptado o português, o tétum, o bahasa Indonésia ou o inglês? A importância do português parece consensual, mas onde levará a política de ensino que está a ser seguida?
Francisca Libânia Gama, 19 anos, conversa com o seu colega Cornélius Barreto, 21 anos, à porta da Universidade de Díli. Estão sentados no chão e falam em tétum, a língua da maior parte da população timorense. «Não é bem tétum... é uma mistura com bahasa Indonésia», admite Francisca. «Com muitas palavras em português», acrescenta Cornélius. Francisca: «E algumas em inglês...» Riem-se. Para eles, isto não constitui um problema. Cresceram assim. Mas estudam Ciência Agrária na Universidade Portuguesa. «Nós somos timorenses, mas queremos estudar e ter uma carreira», explica Francisca. «Por isso aprendemos português. É a língua oficial e o veículo para prosseguir os estudos», acrescenta, antes de admitir que tenciona continuar os estudos na Austrália. «É a nação vizinha e tem um ensino muito bom. Além disso, o meu tio vive lá.»
Francisca e Cornélius pertencem a uma geração que não fala português. Os 24 anos da ocupação indonésia tornaram o bahasa a língua do ensino e da administração. O português foi banido, e a forma de resistir à total aculturação foi desenvolver a mais disseminada das línguas locais, o tétum. Fê-lo, principalmente, a Igreja Católica, que assumiu o protagonismo da resistência cultural e simbólica.
Chegada a independência, há uma geração (todas as pessoas com menos de 30 anos, o que constitui a esmagadora maioria da população) que não fala português. Aprendeu bahasa Indonésia e inglês como segunda língua e fala tétum em casa, além de alguma outra língua timorense, como o fataluco ou o baiqueno. É a chamada geração "Tim-Tim", do nome Timor-Timur, que os indonésios davam à sua 27.ª província. Muitos estudaram na Indonésia ou na Austrália, e é difícil explicar-lhes, hoje, a importância do português. Pior ainda, como vêem que as elites políticas, privilegiadas, falam português, e como lhes é vedado o acesso aos empregos na administração pública, por não falarem a língua agora oficial, estes jovens criaram alguma hostilidade em relação a Portugal e à língua portuguesa.
A actual classe política parece não ter dúvidas quanto à opção de adoptar o português como língua oficial, mas a verdade é que o debate está aberto, nos vários sectores da sociedade. Deve adoptar-se, como actualmente, o português como língua oficial, mantendo o tétum, o bahasa e o inglês como línguas nacionais? Ou deve o tétum ser a língua oficial, passando o inglês para segunda língua e esquecendo o português?
«O português não é a língua da unidade, mas é a língua da identidade», diz Mari Alkatiri, o líder da Fretilin e ex-primeiro-ministro. Por isso – e não por ser ele próprio, que viveu em Moçambique durante a ocupação indonésia, falante de português – decidiu adoptá-lo como língua oficial de Timor-Leste. Sem o português, a identidade do país rapidamente se dissolveria nas culturas circundantes, indonésia e australiana. «Se somos um país pequeno, ainda por cima sem recursos, porque não investimos em ser diferentes?», diz Alkatiri.
José Ramos-Horta, que é visto como mais próximo da Austrália e mais realista quanto às possibilidades de manter uma relação estreita com o longínquo Portugal, também não tem dúvidas quanto à importância do português. «No futuro, as relações com Portugal devem ser mais orientadas para a educação e a formação. Não podemos sobrecarregar Portugal com outros pedidos. É um país amigo, mas não o podemos colocar nessa situação difícil. Temos de diversificar.» E explica: «A língua portuguesa é fundamental para a nossa identidade. O próprio tétum, para se desenvolver, precisa do português. Alimenta-se dele.»
O tétum é uma língua pouco desenvolvida. Não tem uma tradição escrita e carece de vocabulário e complexidade gramatical. Para se tornar num veículo literário e de ensino, apto para os negócios e para a política, terá de se aperfeiçoar, e, para isso, precisa de regras e de outra ou outras línguas.
Geoffrey Hull, linguista australiano a quem as autoridades de Timor pediram um estudo e um parecer sobre o futuro do tétum, estabeleceu regras ortográficas e de evolução para a língua timorense. As palavras que não existem devem ser roubadas ao português, concluiu o filólogo. «O mais importante símbolo nacional é sem dúvida a língua», disse Hull ao Congresso timorense. E explicou que, se se desenvolver recorrendo ao inglês ou ao bahasa Indonésia, o tétum acabará por desaparecer, engolido por aquelas línguas, que têm muito maior força na região. Desenvolvendo-se com o português, o tétum assumirá uma especificidade que o tornará irredutível, e um símbolo de identidade.
Para a construção desta nova língua, porque é disso que se trata, é necessário pegar na sua versão mais aberta e mais plástica, o tétum-praça, também chamado tétum-Díli e, agora,tétum-nacional, e fazê-la evoluir em conjunto com o português. O tétum-nacional é a versão que já inclui muitas palavras em português e noutras línguas. Seria necessário estabelecer regras claras para a sua transformação, como, por exemplo, a de que qualquer palavra inexistente terá de ser adaptada do português, e não do inglês ou do bahasa. Ora isto só é possível se o português for também falado pela generalidade das pessoas, o que, actualmente, não acontece.
Timor, em colaboração com Portugal, criou um Projecto de Reintrodução da Língua Portuguesa. Cerca de 180 professores portugueses estão em Timor para ensinarem a língua. Espalhados por todos os distritos, vivendo muitas vezes em condições difíceis, leccionam não directamente os alunos das escolas, mas os professores timorenses.
Até 2002, ensinavam directamente nas escolas, mas isso, explica o coordenador do Projecto de Reintrodução da Língua Portuguesa, Filipe Silva, traduzia-se, para os alunos, em apenas 30 minutos por dia de português: «O resto das aulas eram em tétum ou bahasa. Não era rentável.»
Agora, os professores dão apenas formação, a professores e funcionários públicos. Para os professores timorenses, há quatro níveis de aprendizagem, e bacharelato. Têm seis horas de aulas por semana, em horário pós-laboral. O objectivo é que passem a ensinar português aos seus próprios alunos. Mas há dúvidas sobre os resultados desta estratégia. «A maior parte desses formandos não fala português», diz Adérito Guterres, vice-director do Instituto Nacional de Linguística, que foi criado para desenvolver o tétum. «Falam os mais velhos, que ainda estudaram no período português e são, na sua maioria, professores primários. Os do secundário formaram-se no período indonésio e falam bahasa e tétum.»
Com duas aulas de português por semana, depois de um dia de trabalho, dificilmente esses jovens professores timorenses aprenderão o português suficiente para que o possam ensinar aos seus alunos.
Além disso, a política governamental agressiva para aprendizagem do português gera alguma hostilidade em relação à nova língua, em cujos cursos se inscrevem contrariados, explica ainda Guterres. «A atitude de alguma arrogância dos professores portugueses também não ajuda. Qualquer australiano, ou mesmo brasileiro, que chega a Timor, a primeira coisa que faz é aprender tétum. Os portugueses raramente o fazem. Isso, por um lado, dificulta o ensino a formandos que não falam português. Por outro lado, é visto como uma falta de respeito pela cultura timorense.»
Nas suas recomendações, Geoffrey Hull tinha insistido nesse ponto. Lembrou que, no período português, «a administração colonial não deu qualquer valor ao tétum nem aos outros vernáculos. O português era o único veículo de instrução escolar, e as matérias leccionadas eram sempre lusocêntricas, ignorando por completo a cultura e a história timorenses. (...) Este programa de assimilação portuguesa pode-se denominar "modelo cultural salazarista"». E concluiu: «É oportuno recomendar a todos os indivíduos que venham aTimor como professores de português que façam o esforço de aprender o tétum. Tal gesto de respeito pela língua partilhada pela maioria da população iria comprovar a todos que o trabalho de restauração da língua portuguesa em Timor-Leste não tem qualquer agenda neocolonialista.»
No entanto,a maioria dos professores portugueses não aprende tétum. É o caso de Fátima Marques, 40 anos, há cinco a ensinar em Timor. «Nunca senti que fosse necessário, porque a maioria das pessoas com quem tenho de contactar fala português.» Cláudia Taveira, 28 anos, em Timor há seis, acrescenta: «Mesmo quando falam tétum, eles usam tantas palavras em português, que se entende tudo.» Almerinda dos Santos, 37 anos, professora em Timor há seis, explica: «O tétum é, praticamente, português. Eles usam cada vez mais palavras portuguesas. Não é necessário aprender tétum.» Além, disso, segundo Fátima Marques, o ensino deve fazer-se totalmente em português, sem recurso ao tétum.
Com experiência de ensino em zonas remotas do território, as professoras falam no entanto das dificuldades que têm em ensinar. Não há livros suficientes para todos os formandos. Os que há ficam na escola, apenas para consulta. Muitos dos formandos são refugiados, vivem em tendas, não têm luz eléctrica nem alimentação adequada. Não falam português nem têm noções de pedagogia. Aprenderam no sistema indonésio, que privilegia a memorização. «Os professores timorenses fazem assim: põem os alunos a fazer cópias e vão fumar um cigarro», conta Almerinda dos Santos, que, na região de Los Palos, era obrigada a dar aulas debaixo de uma árvore.
Os dirigentes timorenses, mesmo os mais ligados à «opção portuguesa», sabem que é necessária uma perspectiva mais conciliadora. «As pessoas que estudaram nas universidades indonésias têm uma boa formação e temos de saber usar as suas capacidades», diz o candidato presidencial da Fretilin, Francisco Guterres Lu Olo. «Só terão de transpor os seus conhecimentos para alíngua portuguesa. E acredito que dentro de uns cinco anos toda a gente saberá falar português.»
Mas que português e que tétum se falarão dentro de cinco anos é difícil prever. José Estêvão Soares, professor de tétum em Díli, está convencido de que o tétum é uma causa perdida. «O tétum-nacional terá de ter tanto de português e será tão difícil de aprender para um timorense, que é preferível assumir que todos terão de aprender português», disse. «O português, e não o tétum, deveria ser a nossa língua nacional. Mas para isso seria necessário em esforço em grande escala, para ensinar a língua.»
Já Ramos-Horta pensa que a questão é inútil porque o que vai acontecer é a fusão das duas línguas. O português vai vencer em Timor, mas os portugueses terão de compreender que será uma língua muito diferente da que falam. Será um português timorense. O "tetuguês".
in Público de 7 de Maio de 2007