O grande problema não é saber-se poucas coisas. Nem tampouco saber-se mal as coisas. É antes saber-se um excesso de coisas erradas. Esta última asserção não é a minha, mas não me recordo do nome do autor. Vai com as minhas desculpas se for vivo ou com as minhas homenagens se já se encontrar em estado de as desculpas não lhe servirem de nada.
Chego ao quiosque dos jornais e uma menina adianta-se, a dizer que queria um maço de tabaco. "Queria?" – pergunta o estanqueiro, subtil. A menina emenda: "Queria, não! Quero!". Ah, ah, ah, ih, ih, ih, amigos como dantes. E na face do homem quando me atende, lê-se a alegria benemérita do didactismo satisfeito. A rapariga estava a ser imprecisa e ele corrigiu. Ganhou o dia. Se não em trocos, pelo menos na preservação daquilo que ele pensa ser a bem-falância do português. A menina, natural e espontânea, aplicou a sua competência linguística e logo foi despojada pela maiêutica do homem da tabacaria que até podia chamar-se Esteves.
Mas na tabacaria não fornecem água. É na leitaria, ao lado, que me é propiciada, dia sim, dia não, uma prelecção linguística sobre o "copo de água". "Um copo de água!" - pede o cliente distraído, portador daquela lusa mania de diluir o sabor do café. "Um copo de água?", ri-se o empregado, "veja lá!". "Ah, pois", emenda o outro, "um copo com água, claro". Ah, ah, ah, oh, oh, oh! Eu nestas coisas não intervenho. Para quê? Perdia a discussão e passava por iletrado...
Vai-se ligar a televisão, ouve-se o jornalista a pronunciar Medicina em vez de "medecina", ou vizinho em vez de "v'zinho" ou Istambul em vez de "chtambul" e percebe-se que há para ali oculto um professor de dicção que julga que o "i", na língua portuguesa, se pronuncia como em "ira". Nisto, como na maior parte das coisas da vida, o que se está mesmo a ver tem a particularidade de estar errado. O Sol não é do tamanho de um pires e chega até a ser um bocadinho maior que o Peleponeso. Além disso, ao contrário do que aparenta, já há quatrocentos anos que deixou de girar em torno da Terra.
Os linguistas chamam ao exercício desta falsa sapiência "hipercorrecção". Como se não sabe que se sabe pouco, é-se excessivo – e temerário – no corrigir. Muito tempo se desbasta a aprofundar esta falsa ciência, nos locais próprios, como leitarias, barbearias, paragens de autocarros, bichas (hipercorrecção "filas") para o passe social, locais e ocasiões muito propícias a eruditas afirmações.
Talvez fizesse falta na RTP um (looooongo e frequentíssimo) programa de Língua Portuguesa, que se ocupasse destas minudências. Quanto às outras televisões, um sistema (pode ler-se "sestema") de multas pesadíssimas (diria mesmo incomportáveis) para as paulitadas e calinadas talvez se revelasse despoluidor. Em certos casos, como os da utilização de palavreado bizarro como "Crocefaia" ou "óliunidslave", nunca menos de oitocentos mil contos, elevados ao quádruplo em caso de reincidência. Neste campo da comunicação social, o princípio do poluidor/pagador devia ter uma expressão bem vincada, exemplar e mui desencorajadora.
Todos nós – os portadores de bom senso (coisa que nada tem que ver com o senso comum) – somos, uma vez por outra, pecadores nestas matérias. Uma ignorância, um engano, um destreino, uma fixação antiga, um equívoco, uma tineta, e lá sai de que nos arrependermos. É tanto de desconfiar o sujeito que diga que nunca comete erros, como o advogado que proclama jamais ter perdido uma causa. Eu nunca me atreveria, neste ponto, a atirar pedradas e a deixar expostos os meus telhados de vidro. Qualquer escritor sabe que, em certos momentos, depois de dúvidas embaraçosas, se lhe impõe optar pela transgressão. Não há purista, por exemplo, que me convença a escrever "bugiganga" em vez de "bibelô". E se formos a ver as propostas dos puristas para evitar certos estrangeirismos, são de fugir a sete pés...
Agora, parecer-me-iam adequadas umas insistentes e pacientes palavras, nesses meios de comunicação com influência sobre o senso comum (coisa que nada tem que ver com o bom senso), que erradicassem o "copo com água", a "caixa com fósforos" e o "tiro com arco". E, a talho de foice, não seria mau que os falantes indagassem sobre os diversos valores do "i" na fonética portuguesa. Só para terem uma ideia. Há por aí boas gramáticas. Quotizavam-se...
Texto escrito para o jornal "Público", de 28.05.96