DÚVIDAS

Sobre o ordinal «dois milésimo» (2000.º)

Em uma resposta intitulada A forma por extenso de 2000.º (e de outros ordinais), de 22/11/2005, o consultor Carlos Rocha faz menção da forma dois milésimo preconizada pelo meu patrício, o gramático Evanildo Bechara, em sua Gramática Moderna do Português, 2002, sendo outrossim adotada pelo Manual de Língua Portuguesa, da autoria de Paul Teyssier, francês e estudioso do nosso idioma.

A princípio dois milésimo me causou estranheza, pois me parecia erro de concordância, mas, depois, comparando-o com outros ordinais, como seiscentésimo e oitocentésimo (respectivamente, variantes ou formas paralelas de sexcentésimo e octingentésimo), creio ter entendido por que milésimo neste caso não se pluraliza. É que o número dois funcionaria como uma espécie de prefixo numérico, o qual, ao ser aplicado a um número ordinal, não o levaria ao plural, mas apenas determinaria quantas vezes ele vale. Se o meu raciocínio estiver certo, então, dois milésimo significaria «duas vezes milésimo», assim como seiscentésimo e oitocentésimo querem dizer, respectivamente, «seis vezes centésimo» e «oito vezes centésimo».

Se o que suponho estiver correto, então, talvez o erro da nossa ortografia seria o de deixar de unir dois com milésimo, dando na escrita "doismilésimo" ou ainda "dois-milésimo".

Por outro lado, surge um dúvida: se o número dois funciona realmente como se fosse prefixo, por que, então, ele se flexiona quanto ao gênero: “duas milésima trecentésima quadragésima quinta”?

Pelo visto, se deduz que, dependendo a que dois milésimo se aplicar, ele pode aparecer como «dois milésimo», «duas milésima», «dois milésimos», «duas milésimas». Exs.: «Simão é o dois milésimo juiz a tomar posse neste Estado»; «Sebastiana é a duas milésima funcionária a ser admitida pela nossa empresa»; «Estes são os dois milésimos estudos intensivos de Química realizados nesta megaescola»; «Estas são as duas milésimas exéquias celebradas nesta catedral.» Como se vê, dois não pluraliza milésimo. Este se flexionaria somente para concordar em número (singular ou plural) e gênero (masculino ou feminino) com a palavra a qual ele se aplica, que é o que acontece com um ordinal como ducentésimo, por exemplo.

Achei que também faltaria neste caso à nossa língua um prefixo de verdade, como du- ou bi- e, no caso de ordinais maiores, tri-, quadri-, etc, o que ficaria melhor ainda, mas talvez já existam para casos como este. É que encontrei, no livro Estudos Práticos de Gramática Normativa da Língua Portuguêsa, do ano de 1968, da autoria de J. Nelino de Melo, autor brasileiro, “bimilésimo” e “bimilionésimo”, os quais, todavia, não aparecem em nenhum dicionário por mim consultado, razão pela qual gostaria de saber se são corretos e aceitáveis. A primeira ocorre, entretanto, seiscentas e trinta e cinco vezes em sítios da Web; a segunda, sessenta e oito vezes.

Por favor, o inerrante veredito do Ciberdúvidas.

Muito obrigado.

Resposta

Muito do que se discute acerca de uma língua tem que ver com a fixação de determinados usos. Se não existe a necessidade de nomear determinada realidade, é natural que não haja designação disponível ou a que existe tenha uso muito escasso. Pode ainda acontecer que a designação dessa realidade seja criada repetida vezes, com a mesma forma, com formas semelhantes ou com formas díspares, pontualmente, em função da necessidade de nomear. O caso dos numerais cardinais é ilustrativo de um cenário destes, porque, quando correspondentes a números elevados, são raramente usados, certamente pela dificuldade de serem constituídas por palavras eruditas, de origem latina, que não alcançaram uso corrente. Nada que se assemelhe, portanto, à flexibilidade dos ordinais que se encontra nas línguas germânicas.

Em relação a dois milésimo, pouco tenho a acrescentar ao que já disse e ao que o consulente considera: na verdade, é forma de estrutura discutível, porque mostra certa inconsistência ao associar um numeral cardinal (dois) com um numeral ordinal (milésimo). Não admira, portanto, que existam propostas tendentes à criação de um termo mais coerente. Por outras palavras, "bimilésimo" perfila-se como bom candidato a tornar-se o ordinal correspondente ao cardinal dois mil;1 e "bimilionésimo" poderia ser a forma do ordinal relativa a dois milhões. Mas, repito, embora estas se afigurem como palavras bem formadas e passíveis de uso com o significado apontado, não as encontro sequer nos vocabulários ortográficos actualmente disponíveis — o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Porto Editora, e o Vocabulário Ortográfico do Português, do ILTEC. Trata-se de uma área que exigirá a colaboração entre as entidades responsáveis pelo planeamento da língua portuguesa para definir um uso normativo.

1 Poderia adoptar-se o critério definido para o espanhol por parte da Real Academia Espanhola, o qual consiste em aglutinar a forma do cardinal à palavra milésimo; cf. Diccionario Panhispánico de Dudas, versão em linha: «Los ordinales compuestos de la serie de los millares, los millones, los billones, etc., en la práctica inusitados, se forman prefijando al ordinal simple el cardinal que lo multiplica, y posponiendo los ordinales correspondientes a los órdenes inferiores: dosmilésimo, quinientosmilésimo, milmillonésimo, tresmilésimo tricentésimo cuadragésimo quinto, etc.» Apesar da falta de exemplos, presume-se que, neste caso, o primeiro elemento deixa de ter flexão.

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