O verbo encarregar não tem particípio passado irregular. Logo: «O detetive foi encarregado de seguir o suspeito.»
O termo «encarregue»1 surge incorretamente por analogia com o particípio passado «entregue», do verbo «entregar». Ora, o verbo entregar admite dois particípios passados, um regular (entregado) e o outro irregular (entregue), este criado nos primórdios da formação da língua portuguesa, mas tal não acontece com o verbo encarregar.
E porquê? Por que razão o verbo entregar tem dois particípios passados e o verbo encarregar não tem? Porque são dois verbos diferentes, cujos particípios passados tiveram uma história de formação diferente.
O normal é os verbos terem só um particípio passado, com a terminação em -ado ou em -ido (falar – falado; vender– vendido; partir – partido), mas há alguns verbos (uma minoria) que apresentam dois particípios passados, um regular (terminado em -ado ou em -ido) e um irregular, normalmente derivado diretamente do latim como cultismo (salvar – salvado, salvo; eleger – elegido, eleito). No caso dos verbos com dois particípios passados, o regular é usado com o auxiliar ter ou haver (ex.: ele tem prendido os opositores), enquanto o irregular é usado na voz passiva (auxiliar ser) e com o verbo estar (ex.: os opositores foram presos, os opositores estão presos).
Há ainda a referir o facto de muitos particípios passados irregulares se comportarem com uma certa autonomia, traduzindo estados e resultados de ações e sendo usados como simples adjetivos ou até como substantivos (por exemplo, limpo, morto, preso), o que não acontece com as formas regulares dos mesmos verbos (limpado, matado, prendido).
Ora o verbo encarregar é formado de carregar e começou por significar «pôr carga em, no interior de (um carro, um navio, por exemplo)», em correlação com descarregar (também formado de carregar), tendo apenas a partir do século XV adquirido o significado de «dar encargo a», «incumbir a alguém a execução de uma tarefa». Ora, nem o verbo original (carregar) nem os seus derivados (descarregar e encarregar) têm convenientemente abonado um particípio passado irregular1, mas, apenas, o regular: carregado, descarregado, encarregado. Assim, não podendo dizer-se «o camião foi *carregue» ou «o camião foi *descarregue», também não deverá dizer-se «ele foi *encarregue de uma missão difícil».
Por outro lado, o particípio passado regular encarregado tem a particularidade de poder ser usado como adjetivo verbal ou mesmo substantivo (o encarregado da obra), pelo que não se justifica a ocorrência de um termo concorrente, que não possui valor semântico acrescido.
Considerando, então, os seis fatores referidos – inexistência em latim, ou no período de formação da língua, de uma palavra da qual se originasse o particípio passado irregular «encarregue»; inexistência do emprego deste termo ao longo dos séculos; inexistência de um valor semântico diferente do do particípio regular; rejeição do termo por parte de autoridades da língua; ausência de uniformidade com os particípios passados dos verbos da mesma família (carregado e descarregado); autonomia do particípio passado regular (encarregado), com funções atribuíveis aos particípios irregulares –, não se vê qualquer pertinência na validação do termo «encarregue» como particípio passado (mas, apenas, como forma do presente do conjuntivo do verbo «encarregar»).
1 Até ao limiar do séc. XX, não há ocorrências do termo «encarregue». O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de Rebelo Gonçalves (1940) regista-o, mas a palavra é referida na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira como pertencendo ao registo popular, não estando presente na maioria dos dicionários de referência portugueses. Há dicionários e linguistas que registam a ocorrência do termo, mas não tenho conhecimento de estudos válidos que abonem a sua utilização e refiram a respetiva significância estatística. Outro caso idêntico é o verbo empregar, que só tem um particípio passado: empregado, e não também "empregue", ao contarário do que vem sendo difundido.