DÚVIDAS

Sobre o uso do verbo manter (em Angola)

Que significa, afinal, manter?

Estaria eu, no entanto, a perguntar isso exactamente por quê? Vejam:

Erro crasso, o verbo manter utilizado no sentido de exactamente inverso ao da ideia original. Não se “mante” uma moça, senhora, etc. para ser esposa de um homem: arranja-se. Quando se "mante" ela fica em bom estado; conservada. No sentido de «contrair uma relação conjugal», «arranjar marido ou mulher», prefira-se, por exemplo, os verbos casar; arranjar.

Os moçambicanos e os santomenses, os quais nós, angolanos, deveríamos seguir, não o usam (o verbo manter, evidentemente) quando é p. ex., para significar de «contrair uma relação conjugal», «arranjar marido ou mulher», mas casar, já que se significa ligar pelo casamento. Ou, ainda, como verbo intransitivo e verbo reflexivo «unir-se pelo casamento».

Não sei onde é que os angolanos foram achar que manter é verbo que significa «contrair uma relação conjugal», «arranjar marido ou mulher». Nunca, em tempo algum, manter foi verbo que significou «contrair uma relação conjugal», «arranjar marido ou mulher». Nem agora nem na época de Camões. Sempre significou: «sustentar; conservar; comprimir; segurar». Assim, por exemplo: «Se eu mantiver alguma esperança», «Mantenha-me conectado», «Manter o controlo», «Mantenha o timbre fechado do o no plural dessa palavra». Sempre sem o significado de «contrair uma relação conjugal», «arranjar marido ou mulher». De uns tempos para cá, no entanto, «a maior parte dos angolanos» achou de usar esse verbo com significado de «contrair uma relação conjugal», «arranjar marido ou mulher». Não o usam quando é para usar (p. ex., com o significado de «sustentar; conservar: manter na prisão, manter em bom estado. Prover do que é necessário à subsistência; comprimir; observar: manter a palavra, o compromisso»), mas empregam-no sem nenhum constrangimento onde essa classe de verbo não tem nenhum cabimento.

Assim, é comum ouvirmos frases como esta, principalmente nos pedidos (alembamentos):

Tia: «Nunca mais te vi. Pensei que já "manteste"!»

Uma das sobrinhas: «Adivinhaste. Ela já "manteu" mesmo.» (Edno Pimentel in jornal Nova Gazeta).

«Ela ainda não "manteu". Porque é "menora" de 18 anos.»

Frases com o verbo manter:

«Fico muito agradecido pela prontidão de me "manter" sempre informado!»

«Muito obrigado pela mensagem! Espero que "mantenhamos" o contacto.»

«A nossa juventude nunca agiu à margem do povo, é do povo e trabalhou sempre para o povo. É preciso "manter" essa rica tradição, que vem dos nossos antepassados!» ((José Carlos de Almeida, ENSABOADO & ENXAGUADO — Língua Portuguesa e Etiqueta)

«Se A é o sucesso, então A é igual a X mais Y mais Z. O trabalho é X; Y é o lazer; e Z é "manter" a boca fechada.» (José Eduardo dos Santos)

«As mulheres podem tornar-se facilmente amigas de um homem; mas, para "manter" essa amizade, torna-se indispensável o concurso de uma pequena antipatia física.» (Albert Einstein)

Exemplos com o verbo manter na imprensa:

«Homem da comunicação e activista social, Siona Casimiro Júnior esteve sempre preocupado com o número de crianças que deambulava pela sua rua. Depois de algum tempo de observação, sobre o que fazer para as "manter" ocupadas, em 2004, resolveu reuni-las. Começou por dar aulas no que é hoje conhecido por Centro de Alfabetização "Kudilonga". No início, agrupou 15 crianças, contando com a ajuda de dois professores voluntários. (Edno Pimentel, in jornal Nova Gazeta 19/ 07/2012)

Gostaria, por isso, que os senhores consultores incluíssem uma pequena abordadagem, ainda que breve sobre o verbo manter.

Resposta

Seguindo a o ordem das questões colocadas:

1. O verbo manter — «do latim manutenere < manu- + tenere, “segurar na mão”» (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado) — tem vários significados que estão intimamente associados ao sentido do próprio étimo latino de que deriva:

— como verbo transitivo: pagar (a alguém) as despesas indispensáveis à vida: É ela quem mantém toda a família; conservar, preservar: Ela mantém os princípios da sua família; segurar: Mantém esse vidro para cima; sustentar: Ela mantém ; observar, cumprir; guardar, reter; reafirmar;

— como verbo reflexo: conservar-se: Ela mantém-se bem; alimentar-se: É ele que se mantém; resistir com êxito: Ela mantém-se firme nas suas convicções.

Relativamente ao valor que nos é indicado, com que o verbo manter é usado em algumas expressões em Angola, ou seja, o de «contrair uma relação conjugal», «arranjar marido ou mulher» (parafraseando o consulente), não podemos deixar de assinalar que à ação de se «contrair matrimónio», de se «iniciar uma relação conjugal» e de se «arranjar marido ou mulher» se associa(va) a ideia de se «segurar na mão» do outro(a)/companheiro(a), de se amparar (física, emocional e economicamente), o que (até há muito pouco tempo) correspondia a «sustentar» e a «pagar as despesas indispensáveis à vida». Repare-se que não era invulgar (nem incorreto) dizer-se frases como «Agora, já tem quem o(a) mantenha» para designar precisamente uma situação de casamento, de comunhão de facto, ou seja, de qualquer tipo de relação semelhante à conjugal.

Repare-se, também, no sentido de uma expressão popular da língua portuguesa — «teúda e manteúda» — em que o particípio irregular do verbo manter (manteúda1 = mantida) expressa precisamente a ideia «mulher que vive por conta de um homem» (Orlando Neves, Dicionário de Expressões Correntes, Lisboa, Editorial Notícias, s. d., p. 356).  Aliás, apesar de o termo manteúdo ser pouco usado atualmente, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (2010), da Porto Editora, regista-o como adjetivo que designa «que é sustentado por outrem; mantido; alimentado».

2. Importa esclarecer que não existem a formas "mante"*, "manteste"* nem "manteu"* (agramaticais) do verbo manter — «Não se “mante” uma moça, senhora, etc. para ser esposa de um homem [...]. Quando se "mante", ela fica em bom estado [...]», «Nunca mais te vi. Pensei que já "manteste"!», «Ela já "manteu" mesmo», «Ela ainda não "manteu". Porque é menora* de 18 anos.».

As formas corretas são mantém (3.ª pessoa do singular do presente do indicativo) nas duas primeiras frases, mantivesses (2.ª pessoa do singular do pretérito imperfeito do conjuntivo) ou «estivesses mantida/manteúda» e «se manteve» (3.ª pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo) ou «se encontra/está mantida/manteúda».

Por isso, mesmo que se trate de registos de enunciados do discurso oral, não podemos deixar de assinalar a ocorrência de erros de conjugação do verbo. Portanto, dir-se-á «Não se mantém uma moça, senhora...», «Quando se mantém», «Nunca mais te vi. Pensei que já te mantivesses, «Ela já se manteve mesmo», «Ela ainda se não manteve. Porque é menor2 de 18 anos.».

De qualquer modo, não nos parece que os últimos enunciados (corrigidos) — «Nunca mais te vi. Pensei que já te mantivesses!», «Ela já se manteve mesmo», «Ela ainda se não manteve. Porque é menor de 18 anos.» — correspondam ao sentido dado às formas verbais das frases originais apresentadas pelo consulente. Porque as correções feitas colocam o verbo manter na forma pronominal («te mantivesses» e «se [não] manteve»), significando que seriam as próprias pessoas a que se referem que se sustentassem, de forma independente, sem o auxílio de alguém/outrem.

Ora, da leitura que se faz dos enunciados originais, apercebemo-nos de que o valor atribuído a essas formas é, respetivamente, o de «fosses mantida/manteúda» [«Pensei que já fosses mantida» ou que «já estivesses na situação de mantida»], «já está/é/se encontra mantida/manteúda» [«Ela já está/é mantida»] e «Ela ainda não é mantida/manteúda. Porque é menor de 18 anos.»

1 Vasco Botelho do Amaral, no seu Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (Lisboa, 1958, p. 380), alerta para a existência do particípio irregular do verbo mantermanteúdo —,  a par do particípio regular mantido.

2 Menor é um adjetivo de dois géneros, o que implica que não tenha a forma feminina. Por isso, não existe a forma "menora", mas sim «menor» para se referir a qualquer pessoa (rapaz ou rapariga) que ainda não tenha atingido a maioridade.

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