«[C]onvidaram-me a uma mesa-redonda onde fui bombardeado com perguntas, a primeira das quais, a inevitável: O que significa exactamente "saudade", termo ouvido tão insistentemente e referido como algo que ninguém não-português consegue apreender?» A pergunta é o ponto de partida para uma crónica do escritor e professor universitário Onésimo Teotónio Almeida, que desvela os supostos arcanos da palavra saudade (texto publicado pelo Jornal de Letras de 2/03/2016).
Um grupo de estudantes de Arte e Arquitectura da Rhode Island School of Design, em Providence, regressou há dias de uma viagem a Portugal, planeada com os seus interesses em mente. Todos encantados e dispostos a regressar amanhã. Para rescaldo, convidaram-me a uma mesa-redonda onde fui bombardeado com perguntas, a primeira das quais, a inevitável: O que significa exactamente «saudade», termo ouvido tão insistentemente e referido como algo que ninguém não-português consegue apreender?
Evitei ser desmancha-prazeres. A palavra é hoje tão sinónimo de Portugal como o galo de Barcelos. E não menos arbitrariamente. A todos os níveis. Circula por aí o Dictionnary of Untranslatables, coordenado por Barbara Cassin, publicado em tradução inglesa pela respeitabilíssima Princeton University Press, e lá vem a língua portuguesa representada com um ensaio sobre o inefável vocábulo.
Já tinha desistido de me repetir, mas voltei a cair na lengalenga.
A intraduzibilidade de um termo é algo normal. Acontece constantemente. Cada língua divide a seu modo a realidade em parcelas que nomeia, e elas não se ajustam inteiramente ao recorte das parcelas do real elaborado noutras línguas. Temos maçã e pêro, enquanto em inglês há só apple. Os anglo-americanos não se preocupavam com a distinção, para portugueses mais que óbvia. Mas os supermercados americanos já inventaram maneiras de distinguir o produto (no Stop & Shop encontro por exemplo gala apples e pink ladies para tipos de peros e maçãs com a designação de fuji apples e granny smith apples). Por outro lado, para nós basta-nos o verbo esperar, enquanto os ingleses o subdividem em hope, expect e wait. Mas ninguém em Portugal espera menos só por não ter acesso a essas distinções vocabulares, como ninguém confunde esperar o autocarro com esperar um bebé, ou esperar uma vida melhor para os filhos. Os falantes de inglês também não deixam de reconhecer a diferença entre to be home (estar em casa) e to be human (ser humano) só por não terem na sua língua a distinção que fazemos entre ser e estar.
Em inglês, não existe o termo «saudade», no entanto ninguém terá menos saudades por causa disso. Qualquer pessoa pode expressá-las de diversas formas valendo-se de vocábulos como longing, homesickness, missing, nostalgia. O que não há é uma palavra única para abranger todas as situações, como acontece com esperar e to be.
A grande diferença é cultural. Se calhar os portugueses, por razões históricas diversas, tiveram inúmeras oportunidades para sofrer de saudades, a começar com as ausências prolongadas dos navegadores a partir de Quatrocentos. Mas não podemos afirmar isso ao de leve sem estabelecer comparações: os espanhóis, por exemplo, dispersaram-se igualmente pelo globo e não criaram um termo equivalente com tanto peso. Os ingleses, um século e tanto depois, espalharam-se também pelos mares e continentes, aliás como os holandeses, e nenhum desses povos cunhou uma palavra única para expressar os sentimentos dos ausentes da pátria quando dos seus se lembravam, ou destes quando sentiam a falta dos embarcadiços. Quer dizer: são as culturas que criam os termos, os mantêm e desenvolvem, vá lá alguém saber exactamente porquê. Todavia, não é a língua portuguesa que é mais saudosa que as outras, mas os portugueses que, por qualquer razão, insistem mais nesse sentimento. E porque concentraram as diversas facetas dele num só vocábulo, ele ganhou mais força por repetido uso, adquirindo pelo menos desde o rei D. Duarte um estatuto especial. Entretanto, ao uso sobreveio o abuso, a ponto de Fernando Pessoa chegar a falar de «a saudade do que nunca houve» (costuma atribuir-se-lhe a expressão «saudades do futuro», mas ao que parece ela é de comentadores pessoanos.
Assim, o termo ganhou uma extensão invulgar, que as metáforas ainda alargaram mais. Ora, em semântica é regra fundamental que o significado é o uso. Dito de outro modo, para se saber o que significa uma palavra ou uma expressão, analisa-se o contexto em que são usadas. E, santo Deus!, quão vastos são os contextos de «saudade» na nossa cultura. Usa-o o fado em letras sobre amores destroçados que recordam momentos de idílio em comum; usa-a um filho que chora a morte da mãe; como o usa um emigrante em carta para a família, ou um adulto revivendo os doces momentos da infância. Como resumir então numa entrada de dicionário o significado de um termo com tanta abrangência e com uma carga histórica assim pesada porque a tudo ele foi aplicado, a ponto de um pensador e poeta lusitano, Teixeira de Pascoaes, ter afirmado que a alma do português é «ônticamente saudosa»? (Apetece perguntar se o Ronaldo em campo dribla e remata também com saudades, mas isto já nos desviaria do argumento aqui em elaboração.)
É, pois, nessa polissemia desbragada do termo em tão variadas circunstâncias, que ele adquire cargas semânticas cada vez mais intraduzíveis, porque em nenhuma outra língua um termo semelhante foi tão frequentemente utilizado para cobrir tão diverso número de situações.
Nada disto envolve qualquer magia; está-se apenas em presença de uma impossibilidade linguística de resumir tanta diversidade de usos e encontrar um equivalente noutra língua. Em parte porque os portugueses poderão ser mais sentimentais (saudosos) que outros povos (é possível), mas sobretudo porque tradicionalmente deram largas à criatividade no uso do termo, sobretudo porque os poetas, mestres na liberdade com as palavras, lhe alargaram exponencialmente o sentido.
Esta dissecação do vocábulo aqui tentada parecerá precisamente uma análise seca, redutora, racionalista. Todavia, o discurso mitopoético sobre ele não goza da profundidade de que os seus enunciadores parecem convencidos. O que nele se esquiva a ser captado pela análise não é essa realidade que na nossa língua denominamos «saudade», mas sim o linguajar confuso, pouco informado linguística e filosoficamente, porque surgido numa tradição avessa ao pensar analítico, ao destrinçar crítico das questões e, sobretudo, alheia ao facto de se fazerem afirmações sobre o carácter único de uma realidade sem nunca se compará-la devidamente com outras.
A saudade portuguesa não fica diminuída se a submetermos a uma análise crítica. E pode, sem dúvida, tal como o galo de Barcelos, continuar a ser servida a turistas ávidos de diferença na mesmidade cada vez maior do mundo moderno. Mas isso não deverá nunca impedir-nos de examinar o termo à lupa e de serenamente procurarmos compreendê-lo.
Foi mais ou menos isso que tentei explicar aos alunos, acrescentando que a beleza sonora de saudade – leve, doce, suave – deve ter ajudado a transformá-la em preferida dos poetas. Mas isso não faz dela algo misterioso que os estrangeiros não possam nunca entender nem sentir.
Cf.: 3 palavras que não se conseguem traduzir + Algumas Curiosidades da Palavra “Saudade”
in Jornal de Letras de 2 a 15 de março de 2016