«[...] Não falta material para parodiar em torno do racismo à portuguesa e, acima de tudo, da sua negação, mas em Portugal, se calhar, não se sabe fazê-lo “com graça”.»
Na semana passada, Ricardo Araújo Pereira publicou, no jornal Expresso, o artigo “O que é claro em denegrir”, onde, no seu conhecido tom jocoso, desmerece a crítica que os movimentos antirracistas têm realizado à linguagem enquanto uma das vias pelas quais se reproduzem, tantas vezes indiretamente, relações de poder. Preocupa-o o dito “cancelamento” de quem sempre teve o privilégio de ser ouvido, ao ponto de ir escavar um caso que aconteceu no Brasil, num programa da Globo, colando-o a custo com um trocadilho do ano passado (até engraçado, por sinal) que Joacine Katar Moreira fez sobre um cartaz do Bloco de Esquerda.
Não tenho interesse em caricaturar a sua relação com o antirracismo em Portugal. Em várias coisas tem tido posições importantes e proactivas tendo em conta o cenário português: a sátira e recusa de/em dar palco ao partido Chega e seu líder, os inúmeros posicionamentos públicos contra intimidações da extrema-direita a ativistas e organizações antirracistas ou o outdoor dos Gato Fedorento que ridicularizava um cartaz racista do PNR na rotunda do Marquês de Pombal. Outras vezes tem sido infeliz. Não me refiro apenas aos casos de black face e veiculação de imagens estereotipadas sobre os negros, mas também à sistemática eleição do antirracismo para «bombo da festa», não se coibindo de participar na horda mediática que atacou uma das primeiras mulheres negras na Assembleia da República em democracia, e à sua falta de vontade de usar o humor como espaço de discussão e desconstrução do racismo.
A linguagem inclusiva é importante, mas apresentá-la como frente prioritária ou única do movimento antirracista é uma caricatura completa. RAP deverá saber que é em torno de questões como a violência policial, a impunidade do racismo nos tribunais, o avanço da extrema-direita, o direito à nacionalidade e à habitação ou a segregação escolar que o movimento antirracista se tem mobilizado prioritariamente. Também é preciso ir para lá do «antirracismo dos anos 80»: não basta combater os racistas “energúmenos” (e os mais polidos, já agora!), o racismo tem dimensões estruturais e institucionais. Aliás, custa compreender como é que alguém que já se definiu como marxista não reconhece a realidade das “estruturas”. Ou será que o conflito capital-trabalho é fruto de gente burguesa mazinha?
O artigo de RAP sai na semana em que a ECRI afirma – como já outros tinham feito – que o contexto da pandemia reforçou o racismo e a discriminação; que é preciso combater o racismo nas forças policiais e ensinar nas escolas aquilo que foi a violência colonial. Esta é também a semana em que o Ministério Público pede a absolvição de seis dos sete arguidos no caso da morte de Luís Giovani, brutalmente assassinado à pancada, e em que nos aproximamos dos 27 anos do hediondo assassinato de Alcindo Monteiro.
Tudo isto acontece num tempo em que avançam os despejos sem alternativa de famílias, muitas delas racializadas, no Bairro Padre Cruz e no Bairro do Griné, em que, precisamente no Brasil, a palavra macaco, dirigida por Rafael Ramos a um jogador negro, leva o primeiro à barra dos tribunais. Não será bom material humorístico o facto de o jogador português alegar sonsamente que em Portugal a palavra macaco não tem um teor preconceituoso? Não é digno de sátira que, depois de anos de negação (ao ponto de Manuel Morais ser expulso da estrutura sindical que dirigia), a PSP, GNR e SEF entrem numa disputa pública sobre quem (afinal) é mais racista? Como não transformar em risota as tiradas luso-tropicalistas inesgotáveis de figuras públicas da nossa praça?
Não falta material para parodiar em torno do racismo à portuguesa e, acima de tudo, da sua negação, mas se calhar não se sabe fazê-lo «com graça». Recorro ao exemplo do programa Porta dos Fundos – apresentado, muitas vezes, como uma espécie de equivalente brasileiro aos Gato Fedorento –, que tem conseguido dar um salto neste domínio. Não quero com isto dizer que tenham o problema resolvido. Continua a ser uma equipa maioritariamente constituída por homens, brancos, heterossexuais e de classe média, em que as personagens negras tendem a ser "tokenizadas" [1]. É dececionante também que no encontro de Gregório Duvivier com RAP, no espetáculo Um Português e um Brasileiro Entram num Bar, seja tão pouco problematizada a colonialidade na relação entre o português do Brasil e o de Portugal.
Ao mobilizar o exemplo da Porta do Fundos não estou a equipará-la à desconstrução que humoristas negros têm feito do racismo, numa tradição humorística cuja influência é tão pouco reconhecida por humoristas portugueses; recorro ao Porta dos Fundos porque é um exemplo de como humoristas brancos podem contribuir para desconstruir o racismo.
Por exemplo, Fábio Porchat assume-se publicamente como racista em desconstrução (seguido por humoristas portugueses como Rui Unas, César Mourão, Fernando Rocha e Jorge Mourato). A equipa brasileira tem vindo a integrar no elenco pessoas negras, designadamente, Nathalia Cruz e Noemia Oliveira, coisa que para RAP seria, provavelmente, uma cedência aos desaires do movimento antirracista (ah e tal lugar de fala, privilégio branco, colonialidade). Mas, sobretudo, o Porta dos Fundos tem feito uma sátira sobre o racismo na sociedade brasileira, agarrando com graça e sentido crítico a criminalização do corpo negro (Negro; Dominado), bem como a sua exotização (Escritor Branco); a romantização da escravatura transatlântica (Escravidão); a falta de representatividade negra nos media (Cota); o “tokenismo” (Amiguinho); a forma como a branquitude se apropria da própria luta antirracista (Fim do Racismo) ou de como faz equivaler o movimento antirracista aos movimentos de extrema-direita (Polémica da semana – racismo); a negação e desconversa sobre o racismo (Nota de Repúdio); a forma como a discriminação opera nas “piadas” (O Mundo está Chato). Sim, é possível fazer humor antirracista e com muita graça!
[1 N. E. – "Tokenizar": referir ou integrar alguém num grupo como «esforço superficial ou simbólico para ser inclusivo para membros de minorias, especialmente recrutando um pequeno número de pessoas de grupos sub-representados para dar a aparência de igualdade racial ou sexual» (cf. "T Tokenismo", Wikipédia, consultado em 14/06/2022). A prática de "tokenizar" é o "tokenismo". São palavras decalcadas do inglês tokenise, «tratar um membro dum grupo minoritário como se estivesse plenamente integrado», e tokenism, «aparência de se praticar a inclusão de grupos minoritários», vocábulos derivados de token, que, entre várias aceções («sinal, senha»), tem sido usado mais recentemente de forma crítica para referir as pessoas de grupos minoritários que são convidadas ou integradas em grupos geralmente homogéneos para dar uma aparência de diversidade. ]
Artigo da socióloga portuguesa Cristina Roldão, in jornal Público, do dia 9 de junho de 2022.