«(...) Enquanto andamos a discutir, e bem, a repercussão do uso de certas palavras – sim, falo do artigo do Ricardo Araújo Pereira no Expresso, “O que é claro em denegrir”, e no de Cristina Roldão [no Público], “Com graça” – na luta antirracista, convivemos ainda com as mais grotescas e abjetas manifestações de racismo na vida pública e política. E elas passam incólumes. (...)»
Não podemos continuar a aceitar que um partido que perfilha um ideário que é racista viva entre nós e pise o chão das mais altas instituições democráticas, como se de uma organização respeitável se tratasse.
Ainda no mês [de maio] veio a público que o Tribunal da Relação de Lisboa não considerou racistas as publicações de Mário Machado no Twitter quando era dirigente do movimento NOS. Nessas publicações, Mário Machado escreveu que não aceitava imigrantes de origem africana, mas os juízes desembargadores consideraram que foram publicações feitas “numa perspectiva de crítica à lei da nacionalidade e não a uma questão rácica ou de inferioridade cultural”.
De mais decisões judiciais poderíamos falar. Mesmo a exemplar decisão no processo movido pela família Coxi, contra André Ventura e contra o partido Chega, se absteve de considerar discriminatória em função da cor, ou seja, racista, a conduta do então candidato presidencial. Recorde-se que estava em causa a exibição da fotografia de Marcelo Rebelo de Sousa, ladeado por membros da família Coxi no Bairro da Jamaica, e as declarações então produzidas por Ventura. Estávamos num debate para as presidenciais. Estava também em causa a última ação de campanha do partido Chega, nessas presidenciais, concretamente a publicação nas redes sociais de uma imagem que continha a referida fotografia e, por cima dessa, uma fotografia de André Ventura usando uma camisola com a bandeira nacional e o símbolo do Movimento Zero (M0), acompanhado por dois homens caucasianos que usavam camisolas com a designação do Movimento Zero (M0). Entre as duas fotografias, o partido fez constar a seguinte frase: “Eu prefiro os portugueses de bem.”
A lei portuguesa, e falo da lei ordinária, trata o racismo como sendo de extrema gravidade. A título exemplificativo, mas deverá ser mesmo o melhor exemplo, se um partido político for considerado racista deverá ser extinto. É o que consta na Lei dos Partidos. Note-se que a corrupção ou o cometimento de outros crimes, cuja gravidade está assimilada pela comunidade, não determinam tal extinção.
Esteve bem o legislador português.
Mas de que serve esse reconhecimento legislativo se é tão difícil para os tribunais portugueses considerarem racista determinado comportamento, pessoa ou organização?
Os portugueses sabem que Mário Machado é racista e que partilha publicações e conteúdos dessa natureza. O próprio não esconde o seu ideário. Quando se sabe que um tribunal teve outro entendimento, fica em causa a bondade dos fundamentos da decisão em causa e não o racismo de Mário Machado.
Enquanto andamos a discutir, e bem, a repercussão do uso de certas palavras – sim, falo do artigo do Ricardo Araújo Pereira no Expresso, “O que é claro em denegrir”, e no da Cristina Roldão aqui no PÚBLICO, “Com graça” – na luta antirracista, convivemos ainda com as mais grotescas e abjetas manifestações de racismo na vida pública e política. E elas passam incólumes.
Não é na discussão da importância da linguagem que está o erro. Essa discussão deve existir e deve existir a tomada de consciência de que há expressões e palavras, que usamos correntemente, que têm implícitas relações de poder e de subjugação.
Acontece que, quem acompanha estas discussões, pode chegar à conclusão que estamos numa fase da luta antirracista muito adiante daquela em que realmente estamos. É como se estivéssemos a olhar para uma casa e a discutir qual a melhor solução de iluminação, quando a casa não tem telhado. Discuta-se a iluminação, mas, por favor, alguém recorde os presentes de que a casa não tem telhado e que está na altura de lhe arranjar um.
Outra vez: em Portugal, é ilegal um partido que difunda mensagens de conteúdo racista. Acontece que temos um partido que o faz; um partido que convocou uma manifestação com o mote “Portugal não é racista” a seguir ao homicídio de Bruno Candé, um partido que defendeu o confinamento de ciganos durante a pandemia.
Não estamos a falar de subtilezas na linguagem como é a de usar o verbo “denegrir”, ou a de falar em “compromissos claros” como fez o Bloco de Esquerda no seu cartaz das legislativas. O partido Chega incita efetivamente ao ódio racial. Mais: ouvimos correntemente comentadores, políticos e analistas falar do racismo do partido. Só que nada acontece. Como terá surgido esta ideia de que somos obrigados a tolerar isto?
Devemos continuar a defender a importância da linguagem inclusiva. Mas não podemos continuar a aceitar que um partido que perfilha um ideário que é racista viva entre nós e pise o chão das mais altas instituições democráticas, como se de uma organização respeitável se tratasse.
Uma lady na mesa, uma louca na cama, dizia a canção do Marco Paulo. Serve perfeitamente aqui. Na maior safadeza aceitamos o pior e somos irredutíveis com aquilo que é subtil.
Artigo da advogada portuguesa Carmo Afonso, a seguir transcrito, com a devida vénia, do jornal Público, do dia 10 de junho de 2022.