DÚVIDAS

ARTIGOS

Lusofonias // Português em Moçambique

«Eu africana, eu sou, eu tenho!»

Moçambicana Paulina Chiziane, na atribuição do Prémio Camões 2021

«(...) A língua portuguesa que eu escrevo, tem as marcas das minhas origens. Nesta ocasião tão especial [da atribuição do Prémio Camões 2021], gostaria de partilhar algumas lições aprendidas na estrada da vida. (...)»

 

Vim de lugar nenhum. Aprendi a escrever na areia do chão. Calcei os primeiros sapatos aos dez anos de idade. Sou a primeira africana, negra, bantu, a receber tão alto prémio. Aqui estou! Eu sou! Caminhei sem saber para onde ia mas cheguei a algum lugar,  lugar [que]  é o Prémio Camões, que recebo hoje, 5 de Maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa. Para quem veio do chão, estar diante dos Governos português e brasileiro, do Corpo Diplomático e de personalidades tão distintas, é algo que me comove profundamente e a todos endereço os meus profundos agradecimentos. 

Agradeço aos meus editores, tradutores, livreiros. Agradeço ao júri que me escolheu para merecer este prémio [Camões 2021]. A minha gratidão maior vai para os meus leitores, em Moçambique e no mundo. 

Sou da tradição oral. Os contos à volta da fogueira foram a minha primeira escola de arte. Gosto muito de contar histórias. Trago nas veias o sangue da cultura bantu e europeia, cuja transfusão recebi nas escolas do mundo e por isso, a língua portuguesa que eu escrevo, tem as marcas das minhas origens. Nesta ocasião tão especial, gostaria de partilhar algumas lições aprendidas na estrada da vida. 

1 – ORIGINALIDADE 

Seja original em todos os teus actos. Saiba que a dignidade de um povo é feita pela sua originalidade. Se não és original, alguém irá apropriar-se do teu ser. Não tenha medo nem vergonha das tuas origens. Eu sou originária de África, sim, sou negra e tenho a minha cultura, porque renegá-la? 

2 – AUTO-AFIRMAÇÃO 

Afirma-te, se queres ser alguém na vida. Afirma os teus passos, deixa as marcas do teu pé gravadas de forma indelével pelos caminhos, para que todos digam: por aqui passou alguém. É preciso afirmar, com toda a pujança: eu sou, eu tenho! Jamais deixarei de ser quem sou. Ninguém irá usurpar o que é meu! Se isso não acontecer, serás apenas mais um, uma nulidade ou simples estatística. 

3 – AUTO-CONHECIMENTO

Conhece-te. Usa uma língua seja ela qual for, e serás original e único. É preciso resgatar os rastos da nossa história que foram omitidos aos longo dos tempos. Não podemos andar à deriva. Quem não se conhece é facilmente manipulado pelo mundo. 

4 – PODER INTERIOR  

Desperta o poder interior que Deus te deu. Se não o fazes, serás sempre secundário, subalterno, eterna imitação do outro. No acto da escrita imprimo na língua portuguesa o poder da minha alma. Os sonhos de liberdade do meu povo. Negoceio a minha identidade e dignidade, como mulher e negra. Escrevo a língua como a sinto, porque não devem existir donos da língua.

Estas quatro etapas alcançam-se com dois verbos fundamentais: o ser e o ter. 

COMECEMOS POR CONJUGAR O VERBO SER. 

Eu sou, tu és, nós somos. Esta conjugação remete-nos ao UBUNTU, nossa filosofia: sou porque tu existes. Leva-nos aos caminhos da complementaridade, harmonia, fraternidade.  

Eu sou negra e tu és branco. Somos diferentes mas podemos ser amigos. Sou humana, feita a imagem e semelhança de Deus. Sou africana, mulher e negra e por isso mesmo afirmo que Deus é mulher e é negra. Eu sou! 

Na noite colonial, havia uma certa dificuldade na conjugação deste verbo. No presente do indicativo, colocava-se a afirmativa e a negativa à mistura. Eu sou e tu não és. Não somos… o que é que somos? Inimigos? Nas guerras travadas ao longo dos séculos provaram a necessidade de uma conjugação perfeita. 

Quando me diziam, tu não és, eu questionava: não sou porquê? Não sou a imagem de Deus? Será que Deus se enganou ao criar a mim, mulher, negra, e o continente africano?

Diziam que me vinham civilizar, usurpando todo o meu ter e o meu ser, para transformar-me numa outra pessoa? E queriam eles substituir Deus na criação do mundo? 

OLHEMOS AGORA PARA O VERBO TER 

Eu tenho, tu tens, nós temos. O que tenho eu, filha de África? Tenho uma terra. Tenho a língua materna, minha herança divina. Tenho a língua portuguesa, minha herança humana trazida pelas circunstâncias da história. Eu tenho. Este verbo era também conjugado na afirmativa e negativa: eu tenho mas tu não tens. Não é justo.

Nas lutas pela liberdade, os africanos conjugaram este verbo com mestria: eu sou, eu tenho, vou lutar pelo meu ser e meu ter. 

Uma visita rápida aos dicionários, mostra-nos como os africanos são retratados nos seus livros sagrados da língua ao longo dos tempos. Há palavras que nos repelem, excluem e por vezes assustam. Dou alguns exemplos: 

CATINGA — Cheiro nauseabundo característico dos negros. Espero que tenha sido retirada. Se ainda permanece, gostaria que solicitar a sua eliminação imediata

MATRIARCADO — Costume tribal africano

PATRIARCADO — Tradição heroica dos patriarcas. 

PALHOTA — Habitação rústica dos negros. 

Hoje, a palhota é reconhecida como uma habitação ecológica. A língua portuguesa para ser definitivamente nossa, precisa de um tratamento, limpeza e descolonização. É preciso conjugar os verbos ser e ter de acordo com as boas regras gramaticais. 

Premiar uma negra bantu com uma distinção tão alta, abre uma nova era na nossa história. Nós africanos, aprendemos a língua portuguesa mas eles não apreenderam as nossas. Aproveito esta magna ocasião para convidar a todos a conhecer a beleza das nossas línguas. Termino afirmando com toda a convicção: eu africana, eu sou, eu tenho!

 

Cf.  «A língua portuguesa precisa de tratamento, limpeza e descolonização», diz Paulina Chiziane Paulina Chiziane e o álbum de fotografias  Podcast do Encontro de Leituras: conversa com Paulina Chiziane, in "Públco", 14/01/2022 + Paulina Chiziane: «No momento da guerra entre o preto e o branco, onde é que fica o mulato?» + Tambores rufando ao sabor dos ventos do Prémio Camões 2021 + «Moçambique nunca conheceu momentos de paz»: entrevista a Paulina Chiziane [in Expresso, 5/05/2023] +  Paulina Chiziane: «Nunca fiz um plano para ser escritora, nem grande nem pequena» +  Paulina Chiziane e Salomé Cabo em xUma Questão de ADN  +  Ah, mas é só uma palavra... Ou sobre como o racismo estrutura nossa forma de pensamento! + Expressões racistas que deviam ser substituídas do vocabulário

Fonte

Intervenção da escritora moçambicana Paulina Chiziane na cerimónia oficial da atribuição do Prémio Camões 2021.Texto transcrito, com a devida vénia, do número 1374 do trissemanário português Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 31 de maio a 13 de junho de 2023. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa