«(...) Quando usamos a maioria destas expressões não temos mesmo consciência do racismo que nelas está entranhado, e quando essa consciência surge vamo-nos censurando e deixando-as cair e desaparecer, e ficando apenas depositadas nos dicionários. (...)»
O racismo não é de hoje, mas antes uma realidade que nos acompanha. Desde que uma comunidade de seres humanos encontrou outra comunidade de seres humanos diferentes e com ela teve de partilhar um espaço ou uma parte da sua vida, o medo e a ignorância a respeito de esse outro levam-nos a fazer sobressair as diferenças, aquilo que o distingue de nós pela negativa, e a torná-lo, irracionalmente: um ser odioso, ridículo, grosseiro, estúpido, fraco, malvado. Como as palavras configuram o modo como vemos o mundo, não é de admirar que encontremos gravados no acervo lexical de qualquer língua, incluindo o português, marcas de racismo– algumas tão antigas que nem nos damos conta do seu verdadeiro peso quando as usamos.
Por exemplo, todos sabemos que o termo mouro é utilizado no Norte de Portigal para designar pejorativamente os lisboetas ou, em geral, as pessoas do sul. Esta designação tem claramente que ver com a ocupação árabe do território que é hoje Portugal e que foi mais tardia no sul do que no norte. Por seu turno, os nortenhos são por vezes designados de bárbaros pelas pessoas do sul. Ora, bárbaro é uma palavra muito interessante, ela provém do grego e, nessa língua, resultava de uma onomatopeia que pretendia representar os sons das línguas estrangeiras, ou pelo menos, a forma como elas era ouvidas pelos gregos. Não é por acaso que a gramática tradicional chamava barbarismos às palavras estrangeiras que ocorriam na língua. Ora, bárbaro, sabemos bem, hoje em dia designa, não só em português, mas em várias línguas europeias, «povos incivilizados» e indivíduos «cruéis», «desumanos», «rudes» ou «grosseiros».
E o que dizer da palavra judiaria, construída sobre judeu e que, além dos guetos de judeus em cidades portuguesas, tem o significado de «maldade» ou «maus tratos»?.E o que dizer ainda da palavra chinesice, formada chinês, para designar coisas escusadamente complicadas e até inúteis? Reparemos ainda em expressões como «trabalhar que nem um mouro» ou «[trabalha] que nem um galego», «rir que nem um preto», «ter paciência de chinês», ou «ver-se negro ou grego para fazer alguma coisa». E como é que se «sai à francesa»? E porque é que uma coisa difícil, para mim, é chinês?
Ora, quando usamos a maioria destas expressões não temos mesmo consciência do racismo que nelas está entranhado, e quando essa consciência surge, vamo-nos censurando e deixando-as cair e desaparecer, e ficando apenas depositadas nos dicionários.
No entanto, eu pergunto-me: será que outras palavras de cariz racista não vêm, ou não virão, para as substituir?
(Áudio disponível aqui)
Cf. A questão racial no Brasil, em 5 pontos + Dicionário de expressões (anti) racistas