« (…) A tão propalada mobilidade de estudantes de países de língua portuguesa tem que deixar de ser um mero efeito retórico e passar a ser uma opção segura e transparente. Para que isso aconteça, temos, de uma vez por todas, que aprender a conhecer e a respeitar as diferentes variedades nacionais do português. (…)»
Há seis anos, contratei uma empresa para apoiar os meus pais. Conheci a Juliana, brasileira, tão profissional, culta e carinhosa que nunca lhe poderei agradecer o suficiente. Ganhava a recibos verdes, uma quantia ridícula por 25 horas semanais de trabalho, mais ridícula ainda quando comparada com o que cobrava a empresa. Um dia, perguntei-lhe porque aceitava aquelas condições, se não poderia mudar de vida. Fiquei a saber a sua história.
A Juliana era veterinária no Brasil e viera para Portugal com o marido em busca de vida melhor. Para exercer medicina veterinária em Portugal, é necessário diploma equivalente a mestrado e inscrição na Ordem dos Médicos Veterinários. A Juliana inscreveu-se num mestrado em veterinária numa universidade pública portuguesa. A parte escolar decorreu tranquilamente, com aproveitamento nos seminários. Então começou o inferno, a dissertação. Quando falámos, a Juliana tinha já entregado várias versões, todas invariavelmente devolvidas sem anotações relativas a conteúdo ou estrutura, mas ornadas de mimosos comentários do tipo: «Isto é brasileiro!», «Eu não leio brasileiro!», «Vá aprender português!».
Li a dissertação e percebi que, de facto, o texto apresentava falhas. A primeira era usar termos técnicos da variedade brasileira e não os equivalentes portugueses; foi criado um glossário e substituídos uns pelos outros. A segunda falha prendia-se com a escrita, i.e., faltava à dissertação estrutura e domínio da escrita académica. Esta dificuldade é o pão-nosso-de-cada-dia dos estudantes de mestrado, de qualquer nacionalidade, mesmo portugueses. Os estudantes chegam às licenciaturas e aos mestrados sem dominar a escrita académica. Cabe aos docentes e orientadores de mestrado ensinar-lhes a fazer ciência (formular questões de pesquisa, estabelecer objetivos, escolher a metodologia e estruturar o conhecimento) e como se escrevem textos científicos. Acredito, quando leio uma dissertação mal estruturada, que a responsabilidade é mais do orientador do que do mestrando. Mas, claro, isto sou eu a pensar. Provavelmente estas ideias não são consensuais.
Propus ajudar a Juliana com a escrita académica e, no final, obteve-se um texto que não envergonhava ninguém, para ser enviado à orientadora. Cometi, porém, o erro mais grave de todos: não “traduzi” o texto para português europeu, i.e., não usei a norma ortográfica de 1945 e não alterei a sintaxe própria do português do Brasil. A Juliana nunca chegou a ver a sua dissertação admitida a provas, mesmo depois de várias mensagens sem resposta enviadas à orientadora, à direção do mestrado e da faculdade, ao reitor.
A Juliana desistiu do mestrado, mas eu ainda hoje me faço muitas perguntas. Será que aquela faculdade e aquele mestrado terão desistido de receber alunos brasileiros? Terão mudado alguma coisa? Será que esta forma de atuar é generalizada? Será que ainda hoje o panorama é semelhante? Será que as coisas são diferentes no Brasil para os estudantes portugueses? Quantas Julianas, falantes de português, haverá por aí, emudecidas pela sua variedade nacional, alvo de preconceito e racismo linguístico?
A tão propalada mobilidade de estudantes de países de língua portuguesa tem que deixar de ser um mero efeito retórico e passar a ser uma opção segura e transparente. Para que isso aconteça, temos, de uma vez por todas, que aprender a conhecer e a respeitar as diferentes variedades nacionais do português. As autoridades de todos os países de língua portuguesa devem deixar de varrer as questões linguísticas para debaixo do tapete, mas antes tratar de as enfrentar e resolver. É possível. É imprescindível.
Artigo publicado originalmente no Diário de Notícias do dia 2 de junho de 2020.