O estranho caso da Moldávia e da sua língua - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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O estranho caso da Moldávia e da sua língua
O estranho caso da Moldávia e da sua língua
Língua, identidade e política

 « (...) Na Moldáviaocupação soviética foi acompanhada de intensa russificação linguística, com predomínio do russo como língua de Estado e de Ensino, uso de alfabeto cirílico, alteração da toponímia, entre outros

 

Moldávia é um pequeno país europeu (33 844 km2; 2 595 771 habitantes), sem orla marítima, limitado a oeste pela Roménia e a norte, leste e sul pela Ucrânia. A capital é Quixinau. O rio Prut, a oeste, e o Dniestre, a leste, são acidentes geográficos determinantes para a configuração do país. A Transnístria, com o significado de «além Dniestre», oficialmente República Moldávia Peridniestriana (RMP), declarou unilateralmente a independência, em 1990; embora não reconhecida internacionalmente, a região mantém governação autónoma, com apoio dos russos, numa situação considerada pelo Conselho da Europa um «conflito congelado».

A Moldávia tem uma história conturbada, que os especialistas dividem em cinco períodos principais: 1) Reino da Moldávia (1359-1812), que ocupava a Bessarábia, a Moldávia Ocidental e a Bucóvina; 2) integração da Bessarábia no Império Russo (1812-1918); 3) integração da Bessarábia na Roménia (1918-1940); 4) integração na URSS (1940-1991); 5) República da Moldávia (desde 1991). A sociedade moldava é diversificada etnicamente – de acordo com os censos de 2014, 75,1% dos habitantes consideram-se moldavos; 7,0%, romenos; 6,6%, ucranianos; 4,6%, gagaúzes; 4,1%, russos; 1,9% búlgaros; e 0,3%, roma. A língua maioritária – moldavo ou romeno – é a língua oficial. O russo, o ucraniano e o gagauz (língua turcomana) são oficialmente línguas minoritárias. O russo é língua veicular predominante entre os grupos minoritários (o que justifica os 14,1% de falantes de russo, segundo os censos de 2014), cooficial na Gagaúzia e dominante na Transnístria.

Declaração de Independência da República da Moldávia, de 1991, faz referência à reintrodução do romeno como língua de Estado e da escrita com alfabeto latino.

Como em outros estados, na Moldávia, a ocupação soviética foi acompanhada de intensa russificação linguística, com predomínio do russo como língua de Estado e de Ensino, uso de alfabeto cirílico, alteração da toponímia, entre outros. O processo que levou à queda da URSS e à independência moldava gerou um forte movimento de desrussificação ou romanização, com perda de estatuto do russo, romanização da escrita, substituição das transliterações cirílico-latinas em vigor por transliterações de base anglófona. Na maioria dos estados ex-soviéticos, este movimento perdura até hoje, às vezes acompanhado de intolerância relativamente aos falantes de russo.

Tecnicamente, a língua oficial da Moldávia é uma variedade da língua romena, ainda insuficientemente codificada, cuja variação é mais significativa a nível fonético e fonológico e a nível lexical. A denominação da língua tem sido fonte de controvérsia. A Declaração de Independência da República da Moldávia, de 1991, faz referência à reintrodução do romeno como língua de Estado e da escrita com alfabeto latino; no entanto, a Constituição de 1994 estabelece, na alínea 1) do artigo 13.º, a língua moldava, baseada no alfabeto latino, como língua do Estado, gerando um conflito denominativo entre os dois mais importantes atos legislativos do país. A 5 de dezembro de 2013, o Tribunal Constitucional da República da Moldávia sanou o conflito, adotando a denominação "língua romena" para a língua oficial da Moldávia.

Toda a situação descrita sugere a fragilidade do sentimento identitário da Moldávia, cuja construção é ainda um processo em curso. A aprovação da candidatura do país a membro da União Europeia, em junho de 2022, a par da da Ucrânia, se, por um lado, reflete o seu desejo de ocidentalização, por outro, fere a sua postura de neutralidade, dominante desde 1991, o que trará consequências para o país, o povo e a política linguística. Veremos.

Fonte

Crónica publicada no Diário de Notícias de 18 de julho de 2022.

Sobre a autora

Margarita Correia, professora  auxiliar da Faculdade de Letras de Lisboa e investigadora do ILTEC-CELGAEntre outras obras, publicou Os Dicionários Portugueses (Lisboa, Caminho, 2009) e, em coautoria, Inovação Lexical em Português (Lisboa, Colibri, 2005) e Neologia do Português (São Paulo, 2010). Mais informação aqui. Presidente do Conselho Científico do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) desde 10 de maio de 2018.