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Controvérsias // Língua universal vs. língua mundial

Um mundo anglofonizado

Resultante do impasse no diálogo interétnico internacional

Sem querer alimentar a polémica Inglês, língua universal: sim ou não? mas não menosprezando o valor da polemologia, sinto-me obrigado a fazer aqui a tréplica, porque a réplica da ilustre consultora respondente, guardado todo o respeito, coloca a questão epigrafada às avessas e fora do seu eixo correto. 

 O que quero dizer, resumidamente, é que o facto de a língua inglesa ter no mundo um papel dominante (demograficamente já ultrapassado há mais de uma década pelo Espanhol, falado por cerca de 3% de falantes a mais fora e dentro do próprio território dos EUA) não legitima o papel de língua internacional veicular ou coveicular de facto de que vem desfrutando não oficialmente e, em algumas organizações internacionais, também oficialmente, porquanto tal legitimidade só poderia advir-lhe  da unanimidade ou esmagador consenso dum órgão de cobertura mundial, como a ONU ou a UNESCO, ou, tanto quanto a medição seja possível, do mérito ou aptidão intrínseco do Inglês como língua veicular neutra para a comunicação intramundial. 

Quanto a reconhecimento oficial de todas as línguas oficiais dos seus Estados-membros por uma megaorganização político-territorial, só o Regulamento Linguístico da União Europeia o cumpre hoje, depois dum defeso temporário em relação ao gaélico irlandês (língua cooficial da República da Irlanda, a par do Inglês). Seria consabidamente impossível à ONU ou à UNESCO adotar no seu seio 7000 línguas cooficiais contentando-se, por isso, com um número limitado delas, ditado mormente por razões orçamentais e políticas.  

Quanto ao mérito ou aptidão intrínseca duma língua étnica (seja o Inglês, o Francês ou o Quimbundo) para funcionar como língua veicular neutra para a comunicação intramundial, suscitam-se questões nada lineares, que em nada devem estar sintonizadas com o seu eventual papel hegemónico ou para-hegemónico no caleidoscópio glossotelúrico

Seja qual for o critério a usar para determinação duma língua veicular elegenda, uma conclusão sobressai, logo à partida: colocar o Inglês no fim da lista. Por ser de facto a protagonista do pós-II Guerra Mundial, esta língua contribuiu para a hegemonia da anglofonia no mundo, não só no plano linguístico, mas também no político, económico, militar, diplomático, científico e cultural em geral. O mundo está anglofonizado ou, pelo menos, anglofonofilizado em todas estas vertentes, ou seja, está colonizado, a partir duma base linguística, pelos países do 1.º mundo falantes-mandadores da língua inglesa. 

Viram-se, ainda recentemente, exemplos flagrantes disto, em diferentes vertentes, com o Brexit e com a aliança estratégica pan-pentagonal, dos  EUA, Reino Unido e seus “British domains”, Canadá, Austrália, e Nova Zelândia, aliança apostada em fortalecer o imperialismo americano contra o crescente movimento multilateralista (dentro do qual hibernam também arqui-imperialismos atavicamente focados no desígnio da sua repristinação imperialista). 

Uma língua étnica pode grosso modo ser analisada em três vertentes – a cultural, a veicular e a identitária (não necessariamente por esta ordem de importância). Em todas as três, o Inglês tem, aos olhos da UNESCO, tanta dignidade como qualquer uma das demais – todas fazem parte do tesouro que é o património linguístico mundial e, como tais, merecem a mesma preservação e igual respeito. Não há, nesta base, línguas superiores e línguas inferiores. A veicularidade internacional da língua inglesa, quando não reconhecida pacticiamente, só pode ser aproveitada e avaliada como resposta pontual ou emergencial a situações de inviabilidade ou impasse no diálogo interétnico ou internacional. 

A língua inglesa tem, entre outras, as vantagens de ser a mais monossilábica das indo-europeias, uma das mais semanticamente flexíveis em razão do contexto, uma das mais ricas lexicograficamente e uma das mais bem artilhadas do mundo em terminologia científica e em nuances lexicais, mas, em contrapartida: 

—  esse monossilabismo é causa de confusão homofónica; 

—  essa flexibilidade é causa de dúvidas e equívocos semânticos; 

— essa riqueza lexicográfica (resultante, entre o mais: 1) da latinização trazida pelo Império romano; 2) da plurissecular ocupação normanda (francófona), a nível da Corte e círculos próximos; 3) da sua “desordenação” gramatical enquanto complexo pluridialetal  pré-shakespeariano, em que o verbo to do – e não pouco mais – era demonizado como aberração do dialeto celta; e 4) da importação de cerca de 2000 novos lexemas latinos por este poeta-dramaturgo de merecida referência mundial) foi e é fonte, não só de nebulosa  polissemia, contextualmente desvolatilizada caso a caso, mas  também de inflacionada sinonímia, atenuada  com a transformação dos sinónimos em nuances semânticas ou novos semantemas.

O papel do Inglês como língua veicular universal não pode deixar de ser analisado na ótica da moderna interlinguística, cujos grandes  campos são, entre outros: 1) O da pesquisa diacrónica da ideia  duma língua comum desde a antiguidade até à atualidade; 2) O da proposta duma língua veicular, planeada, como resposta a uma necessidade intemporal ou como direito humano a uma língua neutra de comunicação mundial; 3)  O da proposta duma língua ou grupo de línguas puramente étnicas; e 4) O  da prognose do processo linguístico mundial ou duma nova ordem jurídica mundial, desejadamente orientada para o uso duma língua segunda com caráter neutral e com função auxiliar.

O caso do Esperanto 

Para tal papel, entre as línguas da antiguidade clássica e pré-clássica, já foram academicamente propostas como  veiculares internacionais o Grego, o Latim, o Hebraico e o Sânscrito (este fonte ancestral das línguas indo-europeias e não poucas asiáticas, além do complexo dual-pluridialetal cigano, em diáspora). Para o mesmo papel, como línguas étnicas sem risco de hegemonização, já foram academicamente propostas, entre outras, entre o séc. XX e o XXI, o Dinamarquês, o Arménio,  o Checo e o Cigano (variante Romá, ainda pluridialetizada). Como  línguas de tradição imperial, foram propostas o Inglês, o Francês, o Alemão, o Russo e o Espanhol

É bom lembrar, uma vez mais, que a UNESCO nunca enveredou pela proposta de solução duma língua ou grupo de línguas puramente étnicas como instrumento veicular para uso auxiliar internacional. Nunca estimulou o uso em particular do Inglês. Tampouco o de qualquer outra língua étnica, exceto se se tratar de língua minoritária ou em via de extinção. No entanto, recomendou aos seus Estados-membros o ensino oficial do Esperanto através de duas deliberações. 

Ultrapassada em interlinguística a dicotomia original em  línguas naturais e línguas artificiais, a  distinção deve fazer-se hoje entre línguas étnicas e línguas planeadas.  É o caso específico do Esperanto, projeto, de entre cerca de 1000, que passou a língua viva, tem mais obras produzidas e traduzidas do que todas as demais em conjunto. 

Entre as línguas planeadas, das quais algumas são de facto artificiais, o Esperanto é linguisticamente uma língua de planeamento interétnico, assumida como língua segunda para cada falante e, por isso e pela sua plurietnicidade, uma língua neutral lexicologicamente e também política, económica, social e culturalmente.

 Além de ser utilizado pela UNESCO e outras organizações internacionais no quadro da ONU — a UNESCO publica a versão em Esperanto do Correio da UNESCO desde 2017 —, também no plano da educação tudo distingue esta língua franca internacional criada, em 1887, pelo médico placo Ludoviko Lazaro Zamenhof (em português, Luís Lázaro Zamenhof). Perto de 80 países de todo mundo  têm escolas que concedem diplomas de graduação, mestrado, mestrado e doutoramento a estudantes que estudam Esperanto. 
 
Com 62 obras-primas  da literatura mundial traduzidas, entre as quais Os Lusíadas, acresce ainda este facto não menos relevante sobre o Esperanto: uma  língua de gramática otimizada, sem irregularidades gramaticais (o Inglês tem, pelo menos, 2500...), apoiada logo à nascença por Lev Tolstoi (1828-1910), é fácil de aprender, particularmente para aqueles que conhecem alguma das línguas oficiais da ONU. Além de ser justa, igualitária, livre e neutra, para todos, desde logo para os falantes de línguas minoritárias. 
ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa