« (...) Não deve o Público escrever em bom português e deixar o bom inglês para o respeitável The Guardian? (...)»
Os leitores protestam regularmente contra os atropelos de que a língua portuguesa é vítima em algumas colunas do [Público]
Em 2019, a UNESCO decidiu proclamar o dia 5 de Maio como Dia Mundial da Língua Portuguesa. Uma das razões invocadas foi o facto de o português ser a 4.ª língua mais falada no mundo, com 290 milhões de falantes nativos, espalhados por quatro continentes. Das várias celebrações realizadas nesse dia, a que mereceu maior relevo na imprensa portuguesa foi a «leitura continuada» d’Os Lusíadas na Universidade Complutense de Madrid. Inspirada no que os espanhóis fazem com o Dom Quixote, de Cervantes, falantes de português, de várias nacionalidades, recitaram Camões, durante sete horas.
É, portanto, natural que nesse dia tenha aumentado o número de leitores que, confrontados com palavras estrangeiras e com as rasteiras por vezes aplicadas ao português em alguns textos do Público, enviam o seu protesto ao provedor. Interroga-se o leitor Miguel Soromenho: «Na edição do Público de 5 de maio, Dia da Língua Portuguesa [lê-se]: “Em bom inglês, o triângulo Chelsea-Abramovich-Rússia viveu mais um plot-twist.” Não deve o Público escrever em bom português e deixar o bom inglês para o respeitável The Guardian? O famoso Livro de Estilo não tem nada a dizer sobre dislates linguísticos deste quilate?”
Pois tem. O Livro de Estilo é claro: «Anglicismos – Deve-se evitá-los, quando há o termo equivalente em português: antecedentes ou enquadramento, em vez de background; finta, em vez de dribbling; meios de comunicação social, em vez de mass media.» Um plot twist, em português, é uma reviravolta – e um anglicismo não deixa de o ser só porque é anunciado como tal.
Aos três exemplos referidos poderíamos juntar muitos mais. Sem entrar no “futebolês” e no “economês” – áreas que dariam pano para mangas e outras tantas páginas do Livro de Estilo –, basta ver como as velhas provas disto ou daquilo deram lugar às “evidências” ou como o Perna de Pau de outrora “apresentou renúncia” à sua condição de pirata e “cometeu suicídio”, quando foi atacado pelo hacker que navega nos mares da informática. Enfim!
De entre os vários reparos sobre o tema que o leitor Eurico de Carvalho enviou ao provedor, dois deles remetem para colunas de opinião assinadas por professoras universitárias: «O deficiente domínio da lusa língua é hoje, como sabemos, um cancro mediático, mas cujas metástases atingem já (ai de nós!) a própria Academia. Vejamos dois exemplos: "Quanto aos milhares de pessoas que ainda não puderam ser evacuadas [sic], tentam obstinadamente resistir, dia e noite, aos bombardeamentos indiscriminados que raramente param. Trata‑se de uma inegável situação de calamidade humanitária [sic]."»
Começando pelo primeiro exemplo, escreve o leitor, com propriedade: «Onde está "evacuadas" deveria estar, em bom português, retiradas. Não se evacuam pessoas, com efeito, mas espaços. Este dislate [é um] formidável sintoma de uma doença, a "canibalização" do português pelo inglês.» Por outro lado, não há catástrofes humanitárias, mas humanas. Humanitárias são, sim, por exemplo, as campanhas em prol dos ucranianos, ou seja, de cariz filantrópico.» Trata-se, portanto, de «uma confusão de conceitos».
O segundo exemplo prende-se com a frase: «A médio prazo, EUA e europeus devem assegurar que a militarização do flanco oriental da NATO dissuade a Rússia de escalar o conflito [sic] para esta região […].» Protesta o leitor[1]: «"Escalar o conflito" é um tremendo disparate semântico: quer isto dizer o quê? Assaltar o conflito? Limpá‑lo e salgá‑lo? Na realidade, trata‑se de um sintagma […]. Na sua origem, encontra‑se a confusão entre dois verbos ingleses: to escalade (escalar) e to escalate (intensificar). Portanto, onde está "escalar" deveria estar, em bom português, intensificar. Posto isto, naturalmente, a frase teria de ser objecto de uma adequada reformulação sintáctica.»
De acordo com Aurélio Moreira, um dos responsáveis pela revisão de textos no Público, a quem submeti o caso, os dois artigos em causa não foram revistos na edição online. «Simplesmente, não temos pessoal para isso: […] o cansaço é mesmo inimigo da atenção.»
A palavra resiliência, que os políticos tornaram moda e os jornalistas copiam acriticamente, é outra pecha da imprensa contra a qual os leitores do jornal se insurgem com frequência. Protesta Fernando Santos e Silva: «Não sou linguista, mas na minha distante vida profissional tive contacto com a resiliência através do aparecimento das rodas resilientes […] em carruagens de caminho-de-ferro. […] Sucedeu que num ensaio real num comboio ICE na Alemanha, as rodas não aguentaram, o comboio descarrilou, bateu no pilar de um viaduto e houve várias mortes. Fiquei a saber na altura que resiliência é sinónimo de elasticidade, o que nem sempre é uma boa caraterística […]. Isto para dizer que resistência, uma ação, um ato, uma força, não é sinónimo de resiliência, uma caraterística ou capacidade, muito útil para os nossos políticos se adaptarem, se acomodarem…”
A palavra portuguesa resiliência significa capacidade de reacção e superação. Usar a palavra resiliência com o sentido de «resistência» é um anglicismo desnecessário. Houve resistência à ditadura salazarista, não houve resiliência.
O uso da palavra resiliência a despropósito recorda ao leitor o uso de uma outra: disrupção. «Para os eletricistas significa que o isolamento não aguentou a diferença de potencial e deu em incêndio, explosão…» Por conseguinte, o leitor fica perplexo quando agora vêm «pregar-nos as inovações disruptivas», como se de uma qualidade se tratasse.
A língua portuguesa não é de ninguém, pertence a todos os que a falam, mas o leitor Carlos Coimbra, de Toronto, no Canadá, fica surpreendido quando os portugueses são excluídos desse todo. «Pois ontem, 7 de maio, no Jornal Nacional da Rede Globo relataram que houve três dias de comemoração […] no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. Mencionaram "sotaques brasileiros", falou uma angolana e uma imigrante de um país não lusófono. A propósito do centenário de Saramago, ouviu-se uma voz espanhola... Voz de algum português?... Nem uma!»
Quanto ao “portinglês”, o provedor pensa em todos os que foram obrigados a deixar Portugal e a exilar-se, durante o Estado Novo. Durante anos, por vezes muitos, sofreram uma forte influência do francês ou do inglês. Nem sempre foi fácil libertarem-se dos galicismos e dos anglicismos. Se o não tivessem feito – valha-nos a ironia –, estariam hoje muito mais in ou branchés, à escolha, o que lhes daria uma vantagem cool sobre os parolos que falam e escrevem correctamente em português.
[1 N. E. (25/05/2022) – Um dos verbos ingleses mencionados pelo leitor – to escalade, «escalar uma fortificação por meio de escadas, como estratégia militar» (Lexico.com) – tem significado muito restrito e uso pouco corrente. No sentido de «escalar», emprega-se muito mais to scale, «subir, escalar» (ibidem). Quanto a to escalate, «subir, aumentar, intensificar(-se)», é verbo que pode ocorrer como intransitivo – «the tensions could escalate even further» («as tensões poderiam aumentar ainda mais») – cf. Linguee), mas que, em português, é discutível traduzir por escalar (?«as tensões escalaram»), havendo preferência por outros verbos, por exemplo, aumentar ou intensificar-se. Também é insólito o uso transitivo de escalar, pelo que se rejeita «a Rússia foi dissuadida de "escalar" o conflito». Agradece-se a Luciano Eduardo de Oliveira a chamada de atenção para a falta de adequação de to escalade entre os pressupostos da crítica do leitor.]