« (...) A questão para mim continua a mesma: o discurso do excesso identitário, com o seu afã de classificar tudo e todos, é censório e intimidatório, é uma linguagem de Autoridade que deslassa a democracia e marginaliza mais do que inclui. ....)»
Esta questão da LGBTTTQQIAA+ sempre me pareceu o afã medieval dos teólogos para definir a hierarquia dos céus, com os Serafins, Querubins, Tronos, Domínios, Virtudes, Poderes, Principados, Arcanjos, e Anjos, o que daria SQTDVPPAA, mesmo assim com menos letras e sem aquele indeterminado +. Ironia à parte, há um aspecto comum, o nominalismo escolástico que, mais do que classificar o mundo, pretende dominá-lo e hierarquizá-lo. Reafirmo o meu ponto essencial: este não é um discurso libertador, mas opressor, e as democracias contêm todas as diferenças, mas não são corporações de identidades, nem de “comunidades”.
Voltemos atrás. Até hoje já vão quatro* artigos no Público (interessante…), escritos contra o meu atrevimento, literalmente centenas de tweets, páginas de Facebook, comentários, e provavelmente ainda vai haver muito mais. Uso a palavra atrevimento, porque é disso mesmo que se trata e isso é dito muito explicitamente em muitos comentários. Nada que não esperasse, ao mexer num discurso que se caracteriza por estar na moda comunicacional e na outra, a comercial, tem um papel significativo nas indústrias culturais urbanas, vale dinheiro e poder, e é intocável, noli me tangere.
As pessoas prudentes não se metem nestes sarilhos. Passei de bestial a besta, coisa a que já estou habituado e não me preocupa nada. Preocupam-me as razões, mas não tenho feitio para vítima pelo que escusam de ir por aí. Passei a ser homofóbico e racista, coisas que nem vale a pena afirmar que não sou, porque se pode sempre dizer que uma coisa é a minha percepção, outra a realidade e, ao escrever o que escrevi, mostrei a minha “verdadeira” natureza, a identidade de uma Pessoa Universal e Neutra (PUN) que sente os seus “privilégios” e o seu “armário” postos em causa. Esta do PUN desconhecia.
A questão para mim continua a mesma: o discurso do excesso identitário, com o seu afã de classificar tudo e todos, é censório e intimidatório, é uma linguagem de Autoridade que deslassa a democracia e marginaliza mais do que inclui. É, em substância, um discurso antidemocrático que acantona mais do que agrega, e é socialmente reaccionário nos seus efeitos, porque minimiza as principais fontes da desigualdade e exclusão de muitos na sociedade capitalista a favor de um radicalismo cultural de privilegiados.
É um mau serviço ao combate à homofobia e ao racismo, como cada vez mais gente percebe. É, com o discurso “trumpista”, de que este é espelho, uma tentativa de engenharia social que constitui uma ameaça para a democracia dos dias de hoje pela sua arrogância e agressividade. De novo, insisto, isto pouco tem que ver com o combate à homofobia, é muito mais da ordem do tribalismo.
Veja-se o que aconteceu e vai continuar a acontecer. Todos os tropos da Autoridade me caíram em cima: o da Juventude (o “velho”), o da Ciência (ignora os avanços da ciência), o do Saber (“ignorante”), o da Vergonha (“artigo sem vergonha”), o do Preconceito, o da Supremacia, o da Contemporaneidade (estou ainda nos anos 90 ou 2000), o do Progresso. Quanto ao “velho”, estou a estudar a hipótese de fazer um acordo faustiano com o Diabo, mas terei de o contactar pela sua página de Facebook, visto que não tenho o número de telefone e o 666 não atende. Isto para não dizer até que ponto este argumento da “velhice”, ou seja, da senilidade, é uma variante do argumento psiquiátrico típico da URSS nos anos de Brejnev.
Talvez um dos argumentos mais perigosos seja o da Ciência e o do Saber, de que eu sou “ignorante”, não percebendo a distinção entre sexo e género, embora o que eles fazem é valorizar a construção social da identidade de género e menorizar o papel da biologia. As duas coisas são relevantes, complementares e não contraditórias, o corpo tanto liberta como prende, mas daí a ter que se aceitar que as categorias da obsessão identitária têm base “científica” e são comummente aceites pelos Tempos Novos e pelo Progresso só vai mais um argumento de Autoridade.
Usado assim, é análogo ao “cientismo” de Engels e Marx, dos teóricos do racismo e da supremacia ariana, do eugenismo, do darwinismo social, todos afirmando que as suas posições derivavam da ciência como autoridade última e são, portanto, inquestionáveis.
Esta é também uma questão política. Os partidos políticos que assentam a sua acção nesta escolástica categorial, transformando-a em “causas”, em particular quando se colocam à esquerda, podem ganhar o combate nos media, mas não o ganham na sociedade porque erram quanto às causas profundas da desigualdade, que não são em primeiro lugar culturais, mas socioeconómicas.
É aí que começam as desigualdades, uma das mais relevantes é a da condição feminina, mas também o racismo e a homofobia, que são causas genuínas, mas cuja força vem das características de sociedades assentes nas desigualdades e exclusões. São todos muito anticapitalistas, mas chega aqui e não dão à desigualdade socioeconómica o papel primeiro na exclusão, preferindo entreter-se num discurso cultural radical chic.
Outro aspecto relevante deste discurso obsessivo das identidades é que ele é «comunitário» mais do que individual. É a «comunidade LGBTTTQQIAA+» que o enuncia pelos seus intelectuais, artistas e porta-vozes, mais do que resulta de uma afirmação identitária própria. Este surto de indignação de que sou alvo tem muito que ver com um território que não está sujeito a qualquer escrutínio, porque, se ele existe, só pode ser por razões perversas.
Eu só falei do assunto porque me sinto a perder os meus privilégios de branco, binário, patriarcal, e isso tira-me o sossego. Mais: logo à cabeça existe um processo de intenção que é dominado por uma perda, sendo que de novo essa perda é de privilégios. Logo quem fala o faz a partir do lugar do opressor. É cómodo como explicação, não é?
(Em breve irei aos textos concretos, quando têm argumentos e não imprecações.)
* Mais categorias não nos excluem, aumentam-nos + A chave do armário e o orgulho da invisibilidade + Para muites, essa foi a maior surpresa + O género e o sexo em sentido extra-moral + A blasfémia de Ricardo Araújo Pereira + O bullying dos opinion-makers + A fraude intelectual do pensamento pós-moderno + Aluga-se retrato (mulher trans negra) para uma boa discussão
Artigo do político e historiador José Pacheco Pereira, transcrito do jornal Público do dia 16 de julho de 2022. O autor escreve segundo a norma ortográfica de 1945.