Em artigo no jornal Público de 12 de Janeiro, referiu a professora Glória Ramalho, directora do GAVE [Gabinete de Avaliação Educacional do Ministério da Educação português], o conteúdo da petição "Pela dignificação do Ensino"*, que pus a circular na Internet em www.petitiononline.com/mercurio/, afirmando que «as actividades de leitura incluídas nas provas já realizadas [9.º ano] não se apoiam, contrariamente ao que se alega na petição, exclusiva e obrigatoriamente em itens de resposta fechada».
Tenho diante de mim a 1.ª chamada de Português do 9.º ano e a interpretação do texto de Alves Redol, Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos, desenvolve-se pedindo aos alunos que, nas questões de 1. a 5., assinalem «com X o quadrado correspondente à alternativa correcta». Na questão 6, deve ser assinalado «com X, como verdadeira (V) ou falsa (F), cada uma das hipóteses que completam» uma dada frase. Impedindo-se o diálogo do aluno com o texto lido, oferece-se, na questão 7., a explicação dos dois tipos de sonho, que nele se encontram, para se sugerir depois a transcrição de exemplos que os confirmem. Termina o trabalho de interpretação com a explicação de uma frase e a identificação de uma figura de estilo. Ou seja, em nove questões, 6 foram de cruz e a sétima uma pergunta já praticamente respondida. Esquema semelhante é o que acontece na prova da 2.ª chamada, com a interpretação do texto de Luísa Costa Gomes, "À grande e à francesa".
Os exames do 12.º ano vão também respeitar, com o apoio de associações dignas de crédito, na perspectiva do Ministério, a mesma estratégia. Não será certamente brincando às cruzes e aos verdadeiros e falsos que os alunos aprenderão a dominar a língua portuguesa e a amá-la.
A substituição de Os Lusíadas de Luís de Camões, na prova da 2.ª chamada, por artigos do projecto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa só vem confirmar a mediocridade de um programa que coloca a Literatura em pé de igualdade com um texto meramente informativo, por exemplo. Como é possível tal opção, quando se propõe para o 12.º ano um estudo mais aprofundado do poema épico, juntamente com a Mensagem de Pessoa? A obra-referência do 9.º ano, que terá continuidade no 12. º ano, substituída por pontos de um tratado? É, com efeito, uma forma ostensiva de menosprezar a Literatura Portuguesa e o papel fundamental e benéfico da Arte em cada ser humano. Na prova da 1.ª chamada, os alunos são convidados a ler apenas duas estrofes da epopeia (o início da narração), constituindo as propostas de trabalho (10, 11 e 12) uma verdadeira agressão à inteligência dos alunos e uma vergonha para qualquer professor. Não as transcrevo, porque sobre esse assunto escrevi um artigo de opinião, no jornal "Público", a 11 de Agosto 2005, que poderá ser consultado.
Quanto à brincadeira extenuante de contar palavras, estratégia que tem sido amplamente criticada por inúmeros professores, escreve a prof.ª Glória Ramalho que essa «indicação tem, igualmente, por finalidade habituar os alunos a disciplinarem as suas práticas de escrita», para além de ser «mais um "critério de exigência"». Quem já corrigiu exames do 12.º ano não esquece a atormentada contagem de palavras que os alunos vão indicando ao lado de cada linha. Escrever desta maneira constitui um verdadeiro pesadelo e só poderá afastar os alunos do prazer, muitas vezes libertador, da escrita. Será que os professores, que redigiram os novos programas, também se impuseram esse «critério de exigência», disciplinando a sua prática de escrita»?
Referindo-se, ainda no texto, que «a competência de leitura» deve ser desenvolvida «no contacto com textos muito diversificados», não podemos deixar de relembrar a diversidade que encontrámos em muitos manuais, respondendo à directiva pedagógica «do respeito pelo discurso que os alunos trazem de casa». Folheámos o Regulamento do [concurso televisivo] Big Brother, complementado com imagens sugestivas do programa; lemos uma entrevista de Herman José, com muita graça e cheia de erros, propositados, claro, para fazer rir; seguimos o horário das telenovelas de todas as televisões, respondendo a testenovelas, com soluções e tudo. E fico por aqui.
Congratulo-me, a finalizar, com a esclarecedora informação sobre os interlocutores privilegiados do GAVE, nomeadamente a Associação de Professores de Português (não representativa dos professores de Português) e a Associação Portuguesa de Linguística (não detentora do monopólio da palavra). Mas tudo está, realmente, certo e a justificar a nossa luta, que não deve, nem pode, parar. Não esqueceremos a frase célebre «Quanto melhor linguista, melhor escritor» divulgada por um linguista num encontro da APP, na discussão sobre os novos programas, nem as ideias defendidas pela APP, indiferente à presença do "Big Brother" num manual do 10.º ano, ou considerando ser suficiente no ensino secundário «Luís de Camões e Eça de Queiroz», ou ainda crendo que o fundamental para um aluno, no final do 12.º ano, é saber «ouvir, falar, ler e escrever».
Têm oportunidade as palavras de António Ferreira: «Floreça, fale, cante, ouça-se e viva/ A Portuguesa língua! E já onde for,/ Senhora vá de si, soberba e altiva./ Se téqui esteve baixa e sem louvor,/ Culpa é dos que a mal exercitaram:/ Esquecimento nosso, e desamor.»
* Cf. A propósito de uma petição + Ainda o ensino do Português e a literatura
Artigo pubicado no jornal Público do dia 26 de janeiro de 2006, escrito segundo a norma ortográfica de 1945.