As dez línguas de Portugal - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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As dez línguas de Portugal
As dez línguas de Portugal
O que é uma língua?

«A diferença de valor entre todas [as] línguas não está nas características intrínsecas do próprio idioma, mas no prestígio, no reconhecimento oficial e no seu uso.»

 

1571829611617_dialetos_Portugal.pngQuem tenta contar as línguas de cada país nem sempre encontra o número de que estávamos à espera. Já houve quem encontrasse dez (!) línguas no nosso país...

Talvez seja uma surpresa para muitos, mas os linguistas não se entendem sobre o que responder à pergunta «Quantas línguas existem no mundo?».

Na cabeça de muitas pessoas, a coisa parece simples: cada país tem uma língua, com uma ou outra excepção que pouco importa, e por isso basta contar os países.

A verdade é que as excepções são tantas que o difícil é encontrar um país que siga essa suposta regra.

Procuremos na Europa um país que tenha uma só língua que, por sua vez, seja falada apenas e só nesse país. Se não me engano, só a Islândia e o seu islandês entram nesta categoria. Tudo o mais são misturas, remendos e falares a cavalgar fronteiras.

Não vamos perder muito tempo à procura de mais exemplos, mas podemos olhar para Portugal. É um país que muitos apontam como um exemplo de monolinguismo, em contraste, por exemplo, com Espanha, esse caldo de línguas.

Na verdade, se virmos bem, mesmo se usarmos o mais apertado dos critérios para contar línguas, em Portugal existem duas línguas nativas: o português e o mirandês, reconhecido oficialmente desde há uns anos.

Curiosamente, tanto o português como o mirandês têm problemas de fronteira (digamos assim): será que o português e o galego são a mesma língua? Será que o mirandês é apenas uma variedade duma língua maior (o asturiano ou leonês)?

Perante estas complexidades, podemos optar por ser brutalistas: isso não interessa nada e o que eu digo é que é. Se formos por aí — como muita gente vai — nem o mirandês interessa. É um dialecto do português, ponto final (não é...). Quem aponta para a complexidade de Espanha como exemplo que não podemos pensar desta forma, leva também com opiniões violentas. Catalão? Manias pós-modernas. Galego? Espanhol aportuguesado. Basco? Grunhidos que ninguém entende.

Ah, a beleza do mundo visto à bruta…

A quem assim pensa, digo, com um sorriso: «Olhe que não, olhe que não…»

Bem, desse lado brutalista já vimos que não aprendemos nada. Mais interessante, embora também a dar para o exagerado, será o lado oposto, o lado daqueles que encontram línguas debaixo de qualquer pedra.

Temos, por exemplo, um livro muito interessante, chamado Ethnologue (que se transformou em website, em www.ethnologue.com), que tenta catalogar todas as línguas do mundo. Às vezes, parece exagerar um pouco na dose... Senão, vejam bem: o site encontra dez línguas em Portugal! E nem sequer incluíram o inglês algarvio.

Sem mais delongas, apresento então as dez línguas do nosso país, segundo o Ethnologue — um país que muitos ainda acham ser um país de um só idioma:

  1. Português. Ah, a nossa língua, a última flor do Lácio, nas palavras de Olavo Bilac (não, não estou a falar do cantor — e, já agora, essa de ser a última não é bem assim). Esta não é surpresa e conhecemo-la bem. Só duas notas: é oficial há muito tempo (embora não há tanto tempo como se pensa) e há quem lhe chame galego — mas olharemos para esse pormenor curioso mais à frente.
  2. Língua gestual portuguesa. Não me venham com os argumentos brutalistas de que isto não é uma língua ou, então, que é português, mas em gestos. Não! É uma língua a sério e nem sequer tem muito que ver com o nosso português oral. Por exemplo, enquanto portugueses e brasileiros se entendem em português (tem dias), os surdos brasileiros usam uma língua gestual muito diferente. Da mesma forma, a língua gestual portuguesa pouco tem que ver com a espanhola — se quisermos entender isto doutra maneira, não se pode dizer que seja uma língua latina. Está mais próxima do sueco gestual, vejam bem. As relações entre as línguas gestuais são outras e cada uma tem um vocabulário, uma gramática e ainda regionalismos e ainda dicionários e normas. Pasme-se agora: esta língua é referida pelo nome na nossa constituição (algo que nem o mirandês consegue).
  3. Mirandês, essa língua falada por uns quantos milhares de pessoas ali, num canto do país… Sei que há muitos que não percebem para que serve preservar à força um falar antigo e (segundo eles) inútil, mas pergunto-lhes: se alguém disser que o inglês é mais útil do que o português, será isso razão para passarmos a falar todos inglês? Isto das línguas não vai lá só com a utilidade de cada uma. (Já agora, conto-vos uma história: há uns anos, passou pelas minhas mãos um projecto de tradução de inglês para mirandês pedido por um cliente japonês. O mundo é estranho. E sabiam que podemos ler Fernando Pessoa em mirandês?)
  4. Cabo-verdiano (ou «kabuverdianu»). Um dos filhos do português (e por isso digo que a nossa língua já não pode ser considerada a última flor do Lácio). No dia-a-dia, chamamos-lhe crioulo (que, no fundo, não é o nome da língua, mas antes o nome do tipo de língua). O cabo-verdiano tem regras como qualquer língua, vocabulário próprio e que já começa a ter alguns dicionários e gramáticas — no entanto, ainda não é oficial em Cabo Verde. Em Portugal, é falado por portugueses de origem cabo-verdiana. (Diz o Ethnologue que o número de falantes em Portugal chega a 200 000 pessoas.)
  5. Barranquenho. Este falar alentejano, ali espetado quase no meio da Andaluzia, até já foi estudado por um grande linguista, José Leite de Vasconcelos. Por isso, respeitinho. Enfim, muitos associam a terra a confusões tauromáquicas, mas, como vemos, é também um município com uma língua própria (não se arrepiem de lhe chamar isso mesmo). Confesso que, a fazer esta lista, não incluiria o barranquenho, pelo menos assim à primeira vista. Mas quem sou eu?
  6. Minderico. Esta é uma língua curiosa, falada ali no meio da serra de Aire e Candeeiros. Começou como código secreto para que comerciantes comunicassem sem que ninguém perce- besse. Com o andar dos anos, transformou-se num falar usado por muita gente, em todos os contextos sociais, nessas comu- nidades serranas. Muitos acharão um excesso para lá do razoável incluir este falar numa lista de línguas. Mas noto que está no Ethnologue e que até tem um código ISO próprio.
  7. Caló português. Esta é a língua de alguns ciganos, que terá uma base portuguesa e muito vocabulário proveniente do romani. Segundo o Ethnologue, é falada por umas 5000 pessoas, em Portugal, e está relacionada intimamente com o caló espanhol, o caló brasileiro, o caló catalão, e por aí fora.
  8. Romani. Esta é a língua indo-iraniana de muitos ciganos europeus. Diz o Ethnologue que há umas 500 pessoas a falar romani em Portugal. Ou seja: temos portugueses que falam uma língua aparentada com o persa. Curioso, não é?
  9. Galego. Prova de que a divisão entre o galego e o português tem muito que se lhe diga, o Ethnologue acha que há zonas de Portugal, ali encostadas à fronteira, que falam galego. Não sei o que lhes diga, embora compreenda a indecisão: a fronteira linguística entre Portugal e a Galiza é muito porosa. Muito mais do que alguns portugueses imaginam. Olhando para o mapa do site, parece que o português transmontano é considerado galego, sem mais. Não sei se será prudente dizer isto a algum falante do galego transmontano, mas tudo bem.
  10. Asturiano. Da mesma forma, também não sei por que razão o Ethnologue põe o asturiano como língua de Portugal. Afinal, o asturiano tem um nome próprio por estas bandas: é o mirandês e ninguém se chateia com isso. Será que consideram um dos dialectos do mirandês como «mirandês padrão» e outro — talvez o sendinense? — como asturiano? Sim, o mirandês tem vários dialectos. E esta, hein?

Será um número inflacionado? Creio que sim. Parece-me excessivo contar o sendinense e o mirandês como duas línguas. O galego também não será língua de Portugal — ou melhor, ganhou um novo nome por cá... Mas percebo a dificuldade do Ethnologue: é mesmo muito difícil encontrar critérios objectivos para contar línguas. Os autores fazem um esforço notável para registar a riqueza linguística do mundo, com critérios definidos, apesar de por vezes nos parecerem demasiado esmiuçados. Aliás, a contagem de línguas acima baseia-se numa consulta que fiz ao Ethnologue em 2016, para escrever um capítulo de um livro (onde incluí uma versão deste texto). Actualmente, o Ethnologue encontra ainda mais línguas no nosso país...

Haverá línguas piores do que outras?

Se olharmos para a lista de línguas acima, vemos uma grande diferença entre as primeiras e as últimas.

O português é uma língua internacional, oficial em vários países e plasmada em séculos de literatura e de codificação em gramáticas e dicionários. Já a língua gestual portuguesa é uma língua reconhecida pela Constituição.

Descemos a lista e temos o romani, uma língua falada por poucas centenas de nómadas, e o sendinense, um dialecto de uma língua que muitas pessoas acham ser ela própria um dialecto. 

Ao contrário do que muitos pensam, tanto as primeiras como as últimas podem ser consideradas línguas completas e podem expressar todas as experiências do ser humano. 

A diferença de valor entre todas estas línguas não está nas características intrínsecas do próprio idioma, mas no prestígio, no reconhecimento oficial e no seu uso. Claro que a falta de uso leva a que estas línguas tenham um vocabulário mais pobre em certas áreas, mas isso resolve-se rapidamente. A estrutura da língua em si, essa, não limita ninguém e pode ser tão complexa e rica no português como no romani — ou no sendinense.

Da mesma forma, podemos falar de forma atrapalhada, obscura e cheia de hesitações em português ou em minderico — e podemos ser claros e directos em qualquer uma destas línguas. Desde que estejamos, claro, entre falantes de cada língua. O minderico é obscuro para quem não o sabe — mas isso também o português.

Não quer isto dizer que seja igual aprender sendinense ou aprender português: se eu dissesse tal coisa, seria bom que me dessem uma martelada na cabeça (com um martelo do S. João, para não aleijar). O que digo é só isto: o valor de cada língua vem do uso social dessa língua, do número de falantes com quem podemos conversar, dos livros que podemos ler, da relação emocional que estabelecemos com essa língua... O valor da língua não está nas características dessa língua.

Digo isto porque há quem julgue que há línguas mais limitadas, diria mesmo defeituosas, que não permitem expressar tudo o que uma pessoa pode querer expressar. Ora, isso é um mito: os limites de quem fala e escreve estão na experiência, no talento e na memória de cada pessoa — e não na língua que fala.

Tudo para dizer que estas línguas podiam, quisessem o acaso e a História do mundo, transformar-se em grandes línguas internacionais e de cultura. Não é impossível que o minderico venha a ser a grande língua de comunicação do mundo inteiro daqui a uns 300 anos. É mais improvável do que eu ganhar o Euromilhões três vezes seguidas, mas não é impossível.

Afinal, o inglês, a língua de maior prestígio mundial por estes dias, passou por séculos em que era desprezado por qualquer pessoa que quisesse ser alguém na vida — os nobres falavam francês normando e essa era a língua de valor. O inglês era o falar do povo e de um ou outro escriba teimoso. 

Também a nossa língua já foi um falar rústico duma região remota: a Galécia do primeiro milénio...

Não basta olhar para uma língua para saber o que o futuro lhe reserva. Não há línguas melhores ou piores: há, sim, línguas com mais ou menos sorte — ou com falantes mais ou menos teimosos. 

Fonte

Apontamento publicado no portal Sapo 24 em 23 de maio de 2021.

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