« (...) Mete medo quando nos devolvem o manuscrito todo sublinhado, assusta ser a vermelho, a cor do erro, a cor do sangue. Quem é que eu penso que sou, armada em pessoa que escreve, com tanto a vermelho? Mas depois ficamos agradecidos. (...)»
Há umas boas semanas que o meu novo livro Coisas de loucos – O que eles deixaram no manicómio está “para revisão”. Isso significa que tudo o que escrevi, 327 páginas de prosa e imagens, está a ser percorrido pelos olhos de alguém que me lê com uma enorme lupa, que amplia cada parágrafo, cada frase, cada linha, cada palavra. Sinto-me como se estivesse a receber uma visita muito especial cá em casa. Eu acho que limpei tudo, o chão, o pó dos móveis, os vidros estão sem dedadas, mas este alguém é especial, vai até às migalhinhas no chão, e às vezes ainda encontra nacos de pão. Mete medo quando nos devolvem o manuscrito todo sublinhado, assusta ser a vermelho, a cor do erro, a cor do sangue. Quem é que eu penso que sou, armada em pessoa que escreve, com tanto a vermelho? Mas depois ficamos agradecidos.
O meu livro já foi lido pela diligente revisora da Tinta-da-China Inês Hugon não sei quantas vezes. De cada vez que o lê, encontra “coisas”, de cada vez que eu o releio, encontro "coisas". Às vezes são as mesmas, outras vezes não. Podíamos andar anos nisto, mas temos de acabar. Vieram as últimas revisões, a amarelo clarinho, dezenas de anotações/comentários/sugestões que percorremos quase até à meia noite. Terminámos com a certeza de que muito nos há de ter escapado.
Tenho um profundo respeito por quem tem este discreto labor e o faz com perfeccionismo e paixão, por quem revê com a minúcia que junta o amor à língua e à escrita, por quem não se importa de ficar na sombra para que o autor faça boa figura, ou pelo menos que não faça tão má figura.
Cf. O revisor entre o sagrado e o profano + A relação exemplar entre autor e revisor (e outros trabalhadores textuais semelhantes) e o mito de Babel: alguns comentários sobre História do Cerco de Lisboa, de José Saramago + Georg Hansson, o revisor sueco da “História do Cerco de Lisboa” + Dicionário da Academia Sueca