A palavra burla com as suas sonoridades que enrolam a língua por juntar a consoante vibrante [r] com a lateral [l] traz consigo uma significação e um ato que também enrola, porque a burla é um artifício usado para enganar os outros. A burla é feita para enrolar os burlados, bem entendido seja.
O burlão é um sujeito bem vestido, bem-falante, que impressiona ao longe. E é por aqui que tudo começa. Uma boa burla exige confiança, pede que se acredite e é uma atividade económica muito rentável. Pelo menos a acreditar na imagem que passam os grandes burlões que se veem nas televisões e nas revistas de sociedade.
A burla traz felicidade. E este facto é curioso porque um dos sentidos perdidos da palavra era exatamente o do gracejo, zombaria, troça. Mas, parece que já só o burlão conhece estes sentidos que caíram em desuso e já só ele mantém a capacidade de rir depois da burla concretizada. Se calhar, este até é o segredo do seu sucesso: os burlões zombam dos burlados, mas só eles o sabem. Não dizem que o segredo é a alma do negócio?
A palavra burla é tão viscosa que até a sua origem esconde. Há quem defenda que evoluiu da palavra latina burra, que significava “bagatela”, “coisa insignificante”. Mas, se assim foi, a palavra fez tudo para renegar a sua origem, porque uma verdadeira burla não pode ser insignificante, não se faz por uma batela. A burla, para valer a pena, tem de ter muitos zeros. Se estivermos perante um burlão de sucesso, teremos de falar de pelo menos seis zeros, que serão guardados num cofre localizado algures nas Ilhas Caimão ou num hotel em Miami. Como estes zeros têm de vir de algum lado, a burla implica obrigatoriamente enganar alguém, lesando-o conscientemente, mas sempre como se nada fosse.
A palavra borla tem também uma origem controversa, mas poderá ter-se formado a partir de uma corruptela de burla, tendo passado a significar “serviço ou bem de que se usufrui gratuitamente”. Aquele que usufrui de uma borla é um borlista e, se pensarmos bem, o burlão é um borlista levado ao extremo, porque este também procura um serviço ou bem gratuitos. A diferença é que o borlista usufrui dele enquanto o burlão se apropria dele.
Aqueles que não são burlões nem burlados assistem, muitas vezes incrédulos, à situação e vão pensando que a burla, que já é sinónimo de “brincadeira de mau gosto”, às vezes mais parece sinónimo de engana tolos.
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Apontamento da autora no programa Páginas de Português, emitido na Antena 2, no dia 26 de julho de 2020.