« (...) A língua continua a moldar a palavra e a reinventá-la. Já não temos só o «obrigado», mas também o "muito obrigado" ou o "obrigadíssimo" – e ainda o levemente irónico "obrigadinho". (...)»
(....) A resposta ao pré-lançamento do [meu] Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português foi muito melhor do que estava à espera! Os livros já estão a caminho da casa dos leitores que os encomendaram. Por isso:
Muito obrigado!
Depois, tenho de agradecer a votação para os Prémios Blogs do Ano. Não ganhámos — parabéns às Capazes, que ganharam na categoria onde o Certas Palavras concorria —, mas sei que centenas de leitores deste blogue votaram várias vezes, o que me encheu de orgulho. De novo:
Muito obrigado!
Por fim: os visitantes a este humilde blogue sobre línguas não param de aumentar — o que me leva a dizer o meu terceiro…
Muito obrigado!
E agora, ou não fosse este blogue o que é, tenho de olhar para a própria palavra «obrigado». Não, hoje não vamos discutir a questão da concordância de tal palavra. Já falámos disso antes — e, aliás, quando pesquisamos a palavra por essa internet fora, parece ser a única preocupação de quem a encontra. Pois, hoje, esqueçamos esse interessante pormenor.
O que quero saber é isto: qual é a origem desta palavra? Assim, à partida, parece fácil. Podemos fazer aquelas viagens no tempo que já começam a ser costumeiras por estas bandas.
«Obrigado» virá do particípio passado do verbo latino «obligō». Este, se escavarmos um pouco, veio da raiz indo-europeia «*leyǵ-», que significaria ligar — e, diga-se, o verbo português «ligar» tem a mesmíssima origem indo-europeia.
Isto é interessante, não tenho dúvidas, mas mais interessante será ver que esta viagem não explica a origem da nossa fórmula de agradecimento. Afinal, a origem que descrevi acima é a mesmíssima origem da palavra «obligado» do castelhano — e um espanhol nunca diz «obligado» para agradecer seja o que for.
Reparemos nisto: «obrigado», na verdade, são duas palavras.
Temos a forma «obrigado», particípio passado do verbo «obrigar», que às vezes se disfarça de adjectivo. (Este uso duplo da mesma palavra como particípio e adjectivo acontece em muitos lugares da nossa língua — e em muitas outras línguas. É algo banal.) Este «obrigado» aparece em frases como «Fui obrigado a abrir a porta.» ou «Eu sou obrigado a virar à esquerda naquele cruzamento.». Esta palavra tem vários usos e tem origem na tal palavra latina. Corresponde, sem grandes discrepâncias, ao «obligado» castelhano.
Mas, depois, temos o nosso amigo e conhecido «obrigado» como fórmula de agradecimento.
Muitas línguas têm uma interjeição com este significado:
Inglês: «thanks»
Francês: «merci»
Castelhano: «gracias»
Alemão: «danke»
Japonês: «arigatō»
E podíamos continuar por aí fora…
A origem de cada uma destas fórmulas é distinta. O «thanks» inglês terá origem na expressão «thanks to you», ou seja, «graças a si», o que será parecido ao percurso que levou às fórmulas castelhana e alemã. Já o «merci» francês teve outra origem, semelhante à origem da nossa expressão «Vossa Mercê», o que nos leva a concluir que o «merci» francês e o «você» português têm uma origem comum.
A fórmula portuguesa surgiu a partir de expressões mais complexas, como eram as fórmulas finais nas cartas, tal como «Muito Venerador e Obrigado a Vossa Mercê». Com o tempo, aquele «obrigado», que tinha a tal origem latina muito antiga, começou a deixar para trás — sem o perder por completo — o sentido original de obrigação e passou a ser usado como fórmula fixa. Ou seja, aquela forma verbal, ao contrário do que aconteceu nas outras línguas, tornou-se a interjeição de agradecimento típica da língua portuguesa. Digamos que a palavra decidiu saltar de categoria — e reinventar-se. No entanto, a palavra anterior («obrigado» como forma verbal) não desapareceu. Reproduziu-se, foi o que foi.
Agora, o ponto mais interessante: como explica Fernando Venâncio neste artigo reproduzido no Ciberdúvidas e publicado originalmente na revista Ler, esta reinvenção da palavra é muito mais recente do que pensamos. Só no século XIX começamos a ver surgir nos nossos textos o «obrigado» com o sentido de agradecimento que lhe damos hoje. Imagino que, na oralidade, o uso seja um pouco mais antigo. Mas, seja como for, dificilmente podemos crer que Camões dissesse «obrigado!» quando alguém lhe dava alguma coisa, por exemplo.
Que consequências tem isto? Para começar, deita por terra a teoria de que a palavra tem uma ligação profunda à alma portuguesa, como já cheguei a ouvir por aí (estas teorias que ligam esta ou aquela característica linguística ao carácter nacional são sempre muito suspeitas). Depois, torna a ideia de que o «arigatō» japonês teve origem no «obrigado» português um belo anacronismo. É engraçada, mas não parece possível. (Mas não fique triste: há outras palavras japonesas de origem portuguesa.)
Como agradeciam os portugueses antes desta transformação tão recente? Como lembra Ana Salgado nesta página, há outras expressões de cortesia na língua: «agradecido»; «bem haja»; «grato»… A certa altura, as tais fórmulas pomposas das cartas começaram a desbastar-se e daí surgiu mais uma fórmula de cortesia: o nosso conhecido «obrigado». Ora, a palavra mais recente acabou por crescer de tal maneira que, hoje, ultrapassa as fórmulas mais antigas — é a nossa interjeição de agradecimento típica e uma das primeiras palavras que um estrangeiro aprende quando aprende português. O mesmo não acontecia há 300 anos.
Como sempre, a língua continua a moldar a palavra e a reinventá-la. Já não temos só o «obrigado», mas também o «muito obrigado» ou o «obrigadíssimo» — e ainda o levemente irónico «obrigadinho».
Dou por terminada esta pequena viagem à origem da palavra «obrigado». Mas não me vou embora sem dizer mais uma vez:
Muito obrigado (por ter lido este texto).
N. E. (12/01/2022) – O autor reformulou este artigo em 1 de novembro de 2020 e reviu-o em 11 de janeiro de 2022 - ler aqui.
texto do autor, no seu blogue Certas Palavras, com a data 17/11/2018, escrito conforma a norma ortográfica de 1945.