Quando eu era pequeno, em Moçambique, não havia lusofonia. Na idade antes da imprópria, atreita a descobertas, conhecia a Água do Luso e no liceu descobri Os Lusíadas. O vinho de Sangalhos não era visto como um dos melhores e o vendido a barril nas cantinas suburbanas e no mato era remartelado a água da torneira. O mato era uma forma genérica que designava o território depois das cidades e dos espaços intermédios dos muitos subúrbios. Como não havia lusofonia, dizer mato implicava uma evidência: África e Moçambique nela não tinham propriamente paisagem. A paisagem é humana, desenhada pelo esforço e pela mão do homem e os negros caracterizavam-se por um grande acanhamento a esses valores maiores. Pelo que o trabalho obrigatório, o chibalo, foi a solução encontrada para fundar os valores da propriedade, da produção e da rendibilidade. Ao mato sem paisagem acrescentou-se algum campo, às vezes imenso, do tamanho de um Alentejo ajoujado ao peso do tempo e com cabeleira de algodão, qual carapinha de velho sentado junto às raízes da árvore grande. As pessoas negras que circulavam entre ambos os espaços demoraram tempo a serem consideradas camponesas. Designavam-se como indígenas. Tinham o seu Código dos Milandos, um resumo muito pragmático do edifício jurídico português. Não passava pela cabeça de nenhum administrador de posto aumentar o peso da machila ou a bagageira do Zephir com a Filosofia do Direito de Hegel.
Os camponeses chegaram com os colonatos. Os outros, cada um «no seu galho tribal» e na babel dos landins incompreensíveis que só “os línguas”, depois tradutores dos postos administrativos, esses outros viviam na sua condição de trabalho braçal para as grandes companhias majestáticas ou desenrascam-se em machambas pequenas na adjacência das parcelas, com casa de alvenaria e tractor e alfaias, privilégio dos verdadeiros camponeses chegados da metrópole. Os ajudantes dos operários trabalham nas Oficinas Gerais dos Caminhos de Ferro, nas fábricas de móveis da Avenida de Angola e os contínuos, alguns assimilados cuidavam dos recados e da higiene nos serviços públicos.
Julgo que aquilo a que hoje se chama lusofonia começou aqui. Ou parte dela. No meu quase mato, que era a segunda travessa da Rua de Lidemburgo, já na circunvalação, nunca usámos essa palavra. Mas também alguma coisa terá acontecido aí com a dita, qual minhoca no chão húmido que brindava com a filária e a mataquenha os miúdos de pé descalço.
O Gamal, por exemplo, devia ser um lusófono sem saber. Chegava à esquina das brincadeiras com o seu berlinde grande, o gula-gula, e abafava-nos as pilecas que comprávamos à quinhenta-cinco no Bazar Oriental do senhor Nordine. Este também devia ser lusófono, “apesar dele" – desculpem o galicismo mal-amanhado -, já que ao protesto sobre o preço respondia um invariável «já falou». Quanto aos gula-gulas nunca percebi o seu privilégio de açambarcadores mas era uma das regras do jogo. Só as vacas leiteiras escapavam à ganância do Gamal. Ah! E do Arrone e do João Carlos, o Jaca. Quando lhes resmoneávamos um «cabrão» libertador, acho que já pinoteávamos o mar alto e a dispersão oceânica da lusofonia. Não sei é qual e isso tem quê-quê-quês deveras complicados. A interjeição “eixx, eixx!” para uma pose de espanto ou de alívio à dor excruciante de um paulito na mona, não veio do Minho. Atrevo-me a afirmar.
A única coisa que sei é que a lusofonia chegou muito depois da Independência. Uma vez perguntei ao meu amigo Viriato se conhecia o termo. Deve ser uma dessas modernices, respondeu-me. A única palavra que se ouvia era «portugalidade», onde devia estar o bacalhau da Terra Nova e as missões dos padres nos matos mais amanhados – «Ena, pá, lembras-te da caterva de mulatinhos que por lá havia?! «Cristianíssimos, claro», respondi-lhe. «Menos o Chang…» «Yes, é verdade. Um brada», retorqui.
E se lembro, em voo de ngingiritane1, estas coisas, é porque penso que ainda faltam algumas libertações. A verdade é que as pressentimos mas ainda não estamos com elas.
Para recomeçar, o que devíamos, de verdade mesmo, era mudar as regras dos berlindes e pôr os gula-gulas no seu lugar. Ou não-lugar, como se diz agora. Um agora que devia ser AHOJE!
Eixx, eixx! Lusofonia, mamanôoo!!!!
¹ Passarinho, na língua ronga.