«(...) A polémica em torno do Acordo Ortográfico e a vida atribulada do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP, criado no papel em 1989 e a funcionar desde 2000 na capital de Cabo Verde) seriam de somenos importância não fosse a língua invocada em permanência como o pilar primordial da CPLP, juntamente com a cultura e os laços históricos. (…)»
A 14 de junho, em Montreal (Canadá), a secretária executiva da (CPLP), Maria do Carmo Silveira, leu, em português, um vibrante e emotivo “Apelo por um Humanismo Universal”, iniciativa que reúne, além da CPLP, a Organização Internacional da Francofonia (OIF), Secretaria-Geral Ibero-Americana (SEGIB) e a Commonwealth. Michaëlle Jean, Rebeca Grynspan e Patricia Scotland martelaram o mesmo texto em francês, espanhol e inglês. Aconteceu no Fórum Económico Internacional das Américas, que desde 1994 reúne anualmente chefes de Estado e de Governo, empresários e sindicalistas, ONG e organizações cívicas para debater os grandes temas da atualidade. A edição deste ano contou com mais de 4000 participantes de três continentes.
O apelo enumera os desafios globais da atualidade e clama por uma renovação do compromisso com a defesa dos direitos humanos, da democracia, da igualdade e do desenvolvimento sustentável, com base no fortalecimento da cooperação internacional; faz referência ao terrorismo, às alterações climáticas, às guerras e também à diversidade cultural e linguística, à igualdade de género, à educação, à juventude, às migrações e à necessidade de colocar a economia ao serviço do bem comum. Apesar da exortação a agir, rápida e energicamente, porque os desafios são imensos e porque o tempo urge, o apelo caiu em ouvidos moucos e os grandes meios de comunicação resolveram ignorá-lo.
E, no entanto, juntas, a CPLP, a OIF, a SEGIB e a Commonwealth, que são pela primeira vez lideradas simultaneamente por mulheres, representam 137 Estados, 3900 milhões de seres humanos, ou seja, 61% da humanidade.
Este apontamento serve para pôr em perspetiva os excessos de lirismo ou de pessimismo que caracterizam os comentários ao desempenho da CPLP. Em relação às congéneres, essa é uma criança com pouco mais de 20 anos e apenas nove membros. A Commonwealth tem 90 anos e 53 membros.
Por isso, Maria do Carmo Silveira tem toda a razão para «encarar a CPLP como uma obra em construção que se vai ajustando em função do contexto» [cf. entrevista na edição impressa da revista África XXI de julho de 2017] e estava errado o escritor português Vasco Graça Moura (entretanto falecido) quando afirmava, em 2010, que «a CPLP é uma espécie de organização fantasma (…) que não serve para rigorosamente nada», a não ser «ocupar gente desocupada».
Realista, o cabo-verdiano Luís Fonseca, que foi secretário executivo da CPLP (2004-2008), fala num balanço «moderadamente satisfatório», contrapondo à visibilidade e atratividade externa da comunidade, manifestas no aumento do número de países interessados em obter o estatuto de «observador associado» (o mais recente foi o Chile), os «tímidos, quase impercetíveis» esforços consentidos «com vista a assegurar que os cidadãos se sintam fazendo parte de uma comunidade em termos de circulação de pessoas, bens e conhecimento».
Há obviamente razões objetivas para que tal aconteça, como lembra Maria do Carmo Silveira. A primeira tem a ver com os próprios estatutos da CPLP, organização intergovernamental que obedece ao princípio da não ingerência e cujas decisões, tomadas por consenso, não são de cumprimento obrigatório, a não ser que cada Estado tome a iniciativa de as incluir na sua legislação própria. O que não se verifica com frequência e quando acontece, como no caso do Acordo Ortográfico (AO) de 1990, provoca uma interminável balbúrdia. Tendo força de tratado e em vigor no Brasil, Cabo Verde, Portugal e São Tomé e Príncipe, o Acordo ainda não foi ratificado por Angola e Moçambique e é sujeito a forte contestação em Portugal, onde jornais e revistas publicam diariamente textos de autores que afirmam com toda a impunidade não respeitar o AO.
A armadilha da língua e da cultura comum
A polémica em torno do AO e a vida atribulada do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP, criado no papel em 1989 e a funcionar desde 2000 na capital de Cabo Verde) seriam de somenos importância não fosse a língua invocada em permanência como o pilar primordial da Comunidade, juntamente com a cultura e os laços históricos.
Que cultura comum e laços históricos afetivos podem pré-existir entre colonizadores e ex-colonizados, escravocratas e descendentes de escravos, dentro de um espaço que se caracterizou tradicionalmente e até à segunda metade do século passado por altos níveis de oralidade e iliteracia? Como analisou Ana Isabel Madeira, numa exposição feita em 2004 no VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de ciências sociais e intitulada «A bandeira da língua como arquétipo de pátria-ficção da lusofonia em contexto pós-colonial», «a língua não é independente dos processos de saber e de poder associados à sua utilização» e «a atualização do conceito de língua em lusofonia é uma tentativa de renegociar as identidades dos povos que têm o português como língua oficial».
Sentiram-no intuitivamente as ex-colónias africanas ao preferir a designação de PALOP (países africanos de língua oficial portuguesa) à de «lusófonos»: a CPLP que nasceu num contexto de reconciliação pós-colonial (os 5 + 1) e de adesão à Comunidade Europeia, por parte de Portugal, e ao Mercosul, por parte do Brasil, nunca se libertou deste «pecado original» que se obstina a ignorar.
Por trás da defesa de uma suposta superioridade da norma culta e literata do português padrão está uma opção de «poder», a favor das elites face aos «matumbos», dos Estados e não dos povos. Com o corolário – não assumido, mas sempre presente na imprensa e nos discursos dos analistas e cronistas políticos – da relação mestre-(mau) aluno em todas as outras dimensões da política: democracia/boa governação versus corrupção/violação dos direitos humanos.
Vinte anos mais tarde, Luís Fonseca perguntava-se: qual é «o conhecimento mútuo entre os povos da CPLP? Que informação tem o cidadão comum de um país, dos restantes países da CPLP? Ou até da própria existência da CPLP?»
Infelizmente, a resposta é «zero» apesar de iniciativas meritórias da própria organização, como a publicação regular de estatísticas coligidas pelos institutos nacionais (ver no site da CPLP) ou o lançamento pelo IILP, sob o mandato do brasileiro Gilvan Müller de Oliveira, do Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa e do Portal do Professor do Português Língua Estrangeira/Língua não Materna. Os «fazedores de opinião» e outros «observadores» ignoram-nas quando contrariam as suas visões.
Mudam os tempos, mudam as vontades
Entretanto, o tempo andou, o contexto mundial alterou-se e a situação de cada país membro também. Na foto de família da próxima cimeira, todos os chefes de Estado que assinaram o ato constitutivo da CPLP terão dado lugar a outros. Desde 2002, todos os membros da CPLP viraram as costas à guerra (Angola, Moçambique); Timor-Leste alcançou a independência; e apesar da crise e instabilidade persistente na Guiné-Bissau, a CPLP perdeu muito da sua aura de família à qual se acode quando as outras portas se fecham e o resto do mundo não pode ou não quer entender.
A concertação política e diplomática deixou de ter uma importância capital mesmo quando se trata de unir votos para eleger um cidadão «lusófono» para um alto cargo internacional, como aconteceu com a eleição do ex-primeiro-ministro português, António Guterres, para secretário-geral da ONU; ou para defender a candidatura do Brasil a um lugar permanente no Conselho de Segurança.
A CPLP é útil, reconhecem todos, para potenciar as políticas externas de cada país membro em determinadas circunstâncias, mas não condiciona as opções a serem tomadas e, cada vez mais, são as organizações regionais em que cada um está inserido – ou procura integrar-se – que norteiam as respetivas diplomacias.
Resta a cooperação, mas mesmo esta anda à procura de novos rumos, apesar dos bons resultados obtidos na troca de experiência e harmonização de procedimentos entre instituições tão diversas como as Forças Armadas, os Tribunais de Contas e Constitucionais, Administração Pública e ex-governo, ministérios e universidades. Com a economia globalizada a ditar as suas leis, era natural que surgisse a tentação de fazer da CPLP uma plataforma económica, uma estrutura dinamizadora de trocas comerciais e investimentos. Mas esta evolução «natural» do «terceiro pilar» da Comunidade foi antecipada pela China que fez do Fórum Macau (criado em 2003) um polo centralizador das suas relações económicas e financeiras com a CPLP, incluindo Brasil e Portugal e mesmo São Tomé e Príncipe, aceite como observador antes de cortar, em 2017, as relações com Taiwan.
Numa entrevista dada a um jornal de Macau, em 2014, o então diretor executivo do IILP, Müller de Oliveira, via na aprovação, por Madrid, da lei Paz-Andrade, votada pelo parlamento da Galiza, uma oportunidade para a entrada desta, de Goa e de Macau na CPLP. Na sua opinião «a Galiza, como região, não pode ser membro da CPLP, mas Espanha, sim, e atribuir à Galiza a coordenação das relações com a lusofonia. A Índia apresentou uma consulta antes da cimeira de Díli, o que indica que pode haver a possibilidade de vir a apresentar no futuro um pedido de adesão».
Segundo Müller de Oliveira, «ainda vivemos no imaginário de Estado-nação do século XIX, em que um país tinha só uma língua. Falamos muito de cooperação económica na CPLP, mas o conceito de cooperação linguística, numa visão cooperativa em que somamos os nossos recursos e partilhamos os ganhos, ainda não está claro para os Estados-membros», que ficam presos às relações políticas da época colonial.
«Sempre que oiço falar de se transformar a CPLP numa estrutura económica ocorre-me estar perante uma proposta de fuga para a frente», diz Luís Fonseca. Em seu entender, «a CPLP deve ter uma dimensão económica para cuja configuração devem contribuir não apenas os Estados mas, igualmente, os operadores económicos, as empresas, as organizações sindicais e os cidadãos. Mas não pode significar alterar os fundamentos, essencialmente políticos, que estão na base da criação da CPLP». Por outras palavras, será sempre necessário uma forte vontade política, que não se tem manifestado noutras iniciativas da CPLP. A organização pode assumir uma forte dimensão económica e tirar partido da língua portuguesa e das complementaridades que os países oferecem. Mas essa dimensão será consequência da afirmação da CPLP como Comunidade de Estados e Povos, não a condição da sua sobrevivência.
Artigo da jornalista Nicole Guardiola, publicado na edição impressa da revista África XXI de julho de 2017.