«No projecto da Lusofonia, o que dá sentido a tudo o resto é a dimensão geoestratégico-política e, inclusivamente, as diásporas de língua portuguesa fazem parte dessa comunidade, embora de maneira diversa. (...)»
– Quais são os vários conceitos da palavra Lusofonia?
– O conceito mais óbvio é a fala em português. De um ponto de vista estritamente linguístico, poder-se-ia ficar por aí mas, obviamente, não é esse o único aspecto, embora o aspecto linguístico tenha uma evidente importância, umas vezes não suficientemente entendida e outras vezes também mal entendida.
Devo dizer que, ultimamente, tenho dado maior importância à Língua Portuguesa no projecto da Lusofonia, ao contrário do que fiz num primeiro tempo, em que insisti noutros aspectos e desvalorizei, até de maneira às vezes aparentemente excessiva, a questão da língua.
Eu dizia, por exemplo, que a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias não era uma universidade da Língua Portuguesa mas uma Universidade de Língua Portuguesa e, ultimamente, tenho insistido em que é uma Universidade de Língua Portuguesa, mas é também, e é bom que o seja, uma Universidade da Língua Portuguesa, já que a Língua Portuguesa pode e deve ser redescoberta como um dos grandes instrumentos da Lusofonia, entendendo-se de uma vez por todas que a Língua Portuguesa é uma das poucas línguas universais do século XXI e, por isso, pode ser um instrumento utilíssimo para a construção da Lusofonia no seu todo e não só da Lusofonia propriamente linguística.
A Lusofonia, para mim, como objectivo ou projecto final, é a construção de um espaço, o “Espaço Lusófono” porque nele se fala a Língua Portuguesa, e que é um espaço cultural, económico, político, estratégico, que pode e deve ter uma personalidade e uma palavra próprias no mundo contemporâneo. Aliás, é a dimensão geoestratégica que me parece essencial e, por isso, em última análise, defendo que a Lusofonia é essencialmente uma questão de geoestratégia económica e política, que dá sentido a tudo o resto.
– Continua a defender que a única Lusofonia que interessa é a que rima com o Ecumenismo Universal?
– Com todas as forças. Claro que isso é uma fórmula mais literária do que propriamente sociológica ou política mas o que quero dizer é que a Lusofonia não deve servir para que, quer Portugal, quer o Espaço Lusófono se sintam “orgulhosamente sós”, mas para que possam dialogar com os outros espaços do mundo contemporâneo e, portanto, tenham essa perspectiva que chamo de ecumenismo universal. Aliás, por fazer parte do meu trajecto político-literário, devo dizer que do que mais gosto no primeiro livro que escrevi em Angola em 1968 é o título Ecumenismo em Angola e, sobretudo, o subtítulo Do Ecumenismo Cristão ao Ecumenismo Universal (que foi reedidado em 2004, ano da criação, em Angola, da “Universidade Lusófona de Artes, Humanidades e Tecnologias”). O que para mim é tanto mais consolador quanto, nos últimos anos e designadamente através de um grande teólogo suíço-alemão e um grande teólogo do Concílio Vaticano II, Hans Ku"ng, está muito na moda (e bem) falar dos chamados «três círculos do ecumenismo: o ecumenismo cristão, que é a unidade de todos os cristãos e católicos; o ecumenismo religioso, que é a unidade de todas as religiões e o ecumenismo universal, ou seja, a unidade de todos os homens.
Ora, há muitos anos que tive essa percepção! O ecumenismo de que falava em Angola e que verdadeiramente me interessava era o Ecumenismo Universal. “Mutatis mutandis”, a Lusofonia só interessa se contribuir para a unidade de todos os homens, o «fenómeno humano», na linguagem de Teilhard de Chardin, ou o «género humano», na linguagem do hino revolucionário da “Internacional”.
– A Lusofonia não poderá representar uma possibilidade de fuga ao relacionamento com outros espaços?
– Ao contrário! Vejo na Lusofonia um contributo para que possa haver mais diálogo, mais colaboração e, de maneira nenhuma, mais isolacionismo ou mais provincianismo.
Aqueles que viveram o isolacionismo em que Portugal esteve até ao 25 de Abril de 1974 são mais sensíveis a esse facto, porque a grande desgraça de Portugal tinha origem no seu isolamento. No tempo do «orgulhosamente sós», o que quer que fosse, até uma pretensa “lusofonia”, só serviria para aumentar ou consolidar esse isolamento.
– Na sua obra alertou para os provincianismos por parte de Portugal e dos outros países lusófonos. Que provincianismos considera que terão ainda de ser ultrapassados para a afirmação da verdadeira lusofonia?
– Como sabe, Portugal era um país provinciano e, nesse tempo, o provincianismo evidente era o do isolamento e atraso. Depois começaram a descobrir-se outros e já Eça de Queirós dizia que tudo nos vinha em pacotes de Paris e Fernando Pessoa viria a insistir no provincianismo de heterocentramento e de alienação.
Quando falei de provincianismo a propósito da lusofonia, alarguei o nome a tudo aquilo que de alguma maneira impede a realização de uma lusofonia simultaneamente autónoma e aberta e indiquei alguns exemplos de provincianismos nos vários países lusófonos.
Em relação a Portugal, por exemplo, nos últimos tempos, a questão das “relações transatlânticas” constitui um dos provincianismos mais correntes, pois fala-se do papel do mar e dos oceanos e depois tem-se apenas presente o mar que nos liga aos Estados Unidos da América do Norte, quando o verdadeiro Atlântico da Lusofonia é outro, o mar de Fernando Pessoa ou de Camões ou de Vergílio Ferreira (quando disse em Paris que «da nossa língua vê-se o mar»), o verdadeiro mar não é o mar que nos liga aos Estados Unidos, mas o que nos liga principalmente ao Brasil e a África e a todos os Espaços Lusófonos.
Quanto ao Brasil, o seu grande provincianismo, nesta perspectiva lusófona, apesar de o Presidente Lula estar a ter um papel internacional de extrema relevância à frente dos chamados países emergentes, é pensar que isso não é compatível com a Lusofonia e que o Brasil pode prescindir da Lusofonia. É também uma visão provinciana pensar que o projecto do Mercosul é incompatível com o projecto da Lusofonia. É provincianismo não ser capaz de ver que umas coisas não só não excluem outras, como até, para serem interessantes e produzirem resultados, devem incluí-las.
– Nesse aspecto as integrações regionais dos países lusófonos constituem uma mais-valia para o conjunto?
– Claro! É obvio que as integrações em África e na Ásia, as integrações regionais, são mais que inevitáveis e devem ser favorecidas mas, de maneira nenhuma, se opõem à Lusofonia. O exemplo mais óbvio, aliás, é o da integração regional de Portugal, a sua integração europeia. Vou dar este exemplo, que é da minha responsabilidade. Na Universidade Lusófona existe em todos os cursos de Humanidades e Tecnologias uma cadeira de “Socioeconomia Política da Integração Europeia” e outra de “Socioeconomia Política do Espaço Lusófono”. Isto para dizer que não há nenhuma oposição e que é enquanto país europeu e membro da União Europeia que Portugal deve ser lusófono e é enquanto país lusófono e membro da CPLP que Portugal tem de ser europeu e membro da União Europeia. Não há contradição, antes pelo contrário: Portugal só interessa à Europa enquanto lusófono e só interessa à CPLP enquanto europeu.
– Será a mais-valia que Portugal poderá levar a ambas as partes?
– Exactamente! A mais-valia que Portugal poderá dar à Europa e a mais-valia que poderá dar ao Espaço Lusófono. Isto não tem sido entendido em Portugal. Num primeiro momento, ficámos como que atordoados com o que tenho chamado de «doença infantil do europeísmo português» ou caímos num “lusofonismo” que é antieuropeu e não chega a ser lusófono e que é mais um antieuropeismo vetero-nacionalista. No entanto, o que interessa é que sejamos plenamente europeus enquanto lusófonos e plenamente lusófonos enquanto europeus.
A grande injustiça
a José Aparecido de Oliveira
– O ideário dos criadores da CPLP, nomeadamente do Embaixador brasileiro José Aparecido de Oliveira, apontava mais para um fórum, uma comunidade de países ou uma comunidade de povos?
– Eu penso que ele apontava mais para uma dimensão cultural e humanista, no sentido algo vago da palavra, da CPLP do que para uma concepção propriamente política e estratégica.
De qualquer modo, eu próprio escrevi que foi uma grande injustiça, quando se criou a CPLP, não ter sido ele o escolhido para secretário executivo. Pareceu-me uma grande injustiça e a melhor maneira de a CPLP não se tornar, ao menos de imediato, uma grande organização, até porque o então Presidente do Brasil estava longe de ser um lusófono militante.
Voltando à questão, penso que a CPLP apontava para tudo, mas não de maneira muito profunda. Por isso é importante definir o que interessa que a Lusofonia seja antes de mais, para depois também poder ser outras coisas. É interessante que seja um fórum, uma comunidade de países e de povos, mas, para ser isso com interesse, tem de pretender ser outra coisa, porque é sendo outra coisa que também é isso. Eu fiz sempre questão de falar da Comunidade dos Países e Povos da Língua Portuguesa e não só da Comunidade de Países, porque há povos que não são países, como é o caso da Galiza, que não é pelo facto de continuar a ser parte do Estado Espanhol que não pode e não deve ser parte da CPLP, e isto também não está entendido. Aliás, é meu objectivo, desde há vários anos, criar, com sede no Porto, a Universidade Lusófona do Noroeste Peninsular, para chamar a atenção para o facto de que aquele espaço do Noroeste da Península é um espaço lusófono e até, de algum modo, a mãe de toda a Lusofonia enquanto espaço linguístico.
– Considera que uma das causas da pouca visibilidade internacional da CPLP resulta dessa falta de definição?
– É a falta de definição e a falta de empenho. A falta de definição leva a que não haja empenho porque não se sabe o que se quer e só se pode querer o que se sabe. Nós estamos ainda na pré-história dos tempos do Espaço Lusófono entendido como espaço geopolítico-estratégico. Há, no entanto, muitas coisas que já existem e, dum momento para o outro, pode acontecer que se desenvolvam, desde que haja vontade política. Mas, por enquanto, o que prevalece é a “austera, apagada e vil tristeza”, de que já Camões falava. E eu até já falei da CPLP como de um «nado-morto». Obviamente, para que não seja verdade!
– E que dizer da inoperacionalidade do Instituto Internacional de Língua Portuguesa?
– Tenho escrito várias vezes que o IILP nunca chegou a morrer porque nunca chegou a existir.
Há pequenos passos que se vão dando. Ainda há dias, em São Paulo, foi criado o Museu de Língua Portuguesa numa das antigas estações ferroviárias emblemáticas da cidade.
Como disse, ultimamente estou mais sensível à importância até política e geoestratégica da Língua Portuguesa e chamaria a atenção para a necessidade de fazer muitas coisas e uma delas era criar uma Academia Lusófona, uma Academia da Língua Portuguesa, que não existe, e era essencial, por razões espero que evidentes! A questão do (des-)acordo ortográfico é uma vergonha mas, por outro lado, traduz aquilo que a lusofonia (não) é!
Considero esta questão da Língua Portuguesa de crucial importância e, ao contrário dos complexos de muitos portugueses e de muitos lusófonos não portugueses, a Língua Portuguesa está “potenciada” para ser uma das pouquíssimas línguas universais do século XXI, segundo a definição de Fernando Pessoa de que uma língua, para ser potencialmente universal, tem de ter pelo menos duas características: ser falada, muito ou pouco, em todos os continentes, em todas as partes do Mundo e ter como sujeito falante um grande país. Este é um trunfo que estamos a desperdiçar. È uma falta de visão linguística mas também falta de visão politica. Por isso é que o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, ou a Academia Lusófona são teórica e praticamente tão importantes.
– Uma das questões estatutárias da CPLP que começa a ser aflorada é a que se prende com o aspecto limitativo da adesão de novos membros e de observadores. Considera que o facto da CPLP se assumir como uma comunidade de países é um factor limitativo e que necessitará de ser reformulado?
– Sobretudo entendendo-se países no sentido estrito do Direito Internacional, é obvio que é limitativo. Bastaria recordar os casos da Galiza, de Goa, etc. E até relativamente a países com outras línguas, como tem sido hábito referir o caso da adesão da Guiné-Equatorial, por exemplo, haveria todo o interesse, até para se ultrapassar todos os fantasmas dos velhos colonialismos ou imperialismos. O mesmo se passa com países limítrofes do Brasil, como o Uruguai e a Bolívia, em relação a vários tipos de associação livre. Haveria, assim, todo o interesse em estabelecer outros critérios, que alargassem a CPLP, sem a descaracterizar.
– Os órgãos dirigentes da CPLP justificam a falta de visibilidade da comunidade com a falta de recursos. Será que se está perante uma questão de um círculo vicioso, ou seja, sem recursos não há visibilidade e sem visibilidade não existirá a necessária afectação de recursos?
– Acredito que a CPLP não tenha recursos mas recursos para fazer o quê? Para fazer o que está a fazer não precisa de mais recursos. Também aqui, como dizem os antigos filósofos, a causa final, aquilo que se quer, é a primeira coisa em que se deve pensar, segundo o velho adágio de que a causa final é a última na ordem da realização mas a primeira na ordem da intenção. Primeiro importa saber o que se quer, e depois é que se define o que é necessário fazer para atingir esses objectivos.
Quando esses objectivos não são definidos, ou são limitados e pouco ambiciosos, também não há investimento para que sejam alcançados. É mais uma questão de falta de definição e de ambição.
Penso que é necessário aprofundar o conceito da «crítica da razão lusófona1», à semelhança do que Kant fez para o conhecimento humano e ver quais são as condições objectivas para que a CPLP possa existir com interesse, não só para os países e povos deste espaço, mas também para os países e povos da humanidade.
Penso que é isso que é preciso aprofundar e, depois, é preciso ir fazendo com que não haja círculos viciosos ou círculos quadrados ou o que quer que seja de igualmente absurdo. É necessário ir seguindo a teoria com a prática. Se a língua é importante, então vamos fazer, por exemplo, com que não faltem professores de Português em nenhuma parte do Espaço Lusófono e do Mundo, vamos fazer com que a Língua Portuguesa seja sempre devidamente considerada nas reuniões internacionais, e não aconteça como actualmente em que uma das poucas línguas potencialmente universais do século XXI é constantemente tratada como língua secundária. É necessário ter objectivos e agir em consequência.
– Considera que o Espaço Lusófono ainda não está construído uma vez que, por exemplo, o Estatuto de Cidadão da CPLP ainda não foi aprovado?
– Por exemplo. Basta ter-se de fazer uma viagem a alguns países lusófonos, com a exigência de passaportes, vistos, etc., para se ver que esse Espaço é ainda uma ilusão, uma abstracção. Os filósofos escolásticos distinguiam entre o ser real e o ser de razão e o ser de razão ainda podia ser de razão com fundamento na realidade e de razão sem fundamento na realidade. Muitas vezes digo que, sob muitos aspectos, a CPLP é ainda um ser da razão sem fundamento na realidade.
Na carta que escrevi ao Presidente Lula relembro quanto o Brasil e a CPLP fazem falta para restabelecer os equilíbrios necessários, a nível da Comunidade Internacional.
Mas, assim, qual é o peso da CPLP nos grandes conflitos mundiais? Nem sequer se fala dela! O que é tanto mais lamentável quanto é óbvio que o Espaço Lusófono tem alguns países que serão de grande peso no presente e no futuro, como são os casos do Brasil, de Angola e de Moçambique ou de Portugal, que tem o peso físico que tem, mas igualmente a Cultura, a História e a Geografia que tem.
Penso que a CPLP poderia ser a grande oportunidade de Portugal, do Brasil e dos outros países lusófonos no século XXI e uma oportunidade, não só desses países mas também de toda a Humanidade. E faço votos para que o século XXI seja, finalmente, o “século da Lusofonia”!
1 Para uma Crítica da Razão Lusófona, 11 Teses sobre a CPLP e a Lusofonia, Edições Universitárias
Cf. Conceito de Lusofonia, de Maria Sousa Galito.
Entrevista prestada pelo então reitor da Universidade Lusófona, Fernando dos Santos Neves, em Lisboa, a 23 de Março de 2005, para a Tese de Doutoramento em Sociologia do professor universitário José Filipe Pinto.