Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Dia do Trabalhador
A palavra do 1.º de Maio

No dia 1 de maio, Dia do Trabalhador, a professora Carla Marques apresenta uma crónica dedicada à palavra trabalhador. 

Pergunta:

É possível torcer o uso de enveredar, para considerar que se trata do verbo sinónimo de envidar, neste caso?

«No sentido de demonstrar ao povo ucraniano que não está sozinho nesta luta pela independência e liberdade, pela democracia, por um Estado de direito e pela paz, apelamos a Vossa Excelência para que possa enveredar os seus mais diligentes esforços junto do Conselho Supremo da Ucrânia (Parlamento Ucraniano – Verkhovna Rada) para que uma delegação de deputados desta Comissão possa realizar uma missão parlamentar com os seus congéneres ucranianos» (Público, 26/04/2022) – refere a proposta assinada pelos deputados Ricardo Baptista LeiteTiago Moreira de SáPedro Roque.

Obrigado.

Resposta:

Os verbos enveredar e envidar não são sinónimos, pelo que não poderão ser usados indiscriminadamente.

O verbo enveredar significa «tomar um caminho» («enveredar por uma estrada»); «dirigir-se expressamente a um determinado lugar» («enveredou dali para casa»); «orientar, encaminhar» («a conversa começava a enveredar para um terreno desagradável»)1.

Por sua vez, o verbo envidar significa «aplicar com empenho (recursos, iniciativas, diligências)» («envidar os recursos necessários para atingir os seus objetivos»)1.

Na frase apresentada, o sentido que se pretenderá veicular está relacionado com o esforço feito para atingir algo. Por esta razão, o verbo adequado será envidar:

(1) «[…] para que possa envidar os seus mais diligentes»

Disponha sempre!

1. Os significados e os exemplos apresentados são retirados do Dicionário Houaiss.  

Pergunta:

Talvez se possa clarificar a resposta a Nelson Brás, em 6/4/2022, se tomarmos uma frase com o termo login, como «É preciso fazer login na página para ter acesso às informações».

Não se diz «É preciso fazer um login na página...», o que parece dar razão ao revisor citado pelo consulente.

Resposta:

Com efeito, é possível que a análise envolvida na questão colocada aqui esteja relacionada com a sintaxe que envolve a palavra login. Será, com efeito, estranha uma construção em que login seja determinado por um artigo indefinido:

(1) «?Faça um login

No entanto, encontramos outras situações em que login é determinado por artigo definido:

(2) «Deve seguir estes passo para fazer o login

ou mesmo por artigo indefinido:

(3) «Para fazer um login válido, deverá…»

Como já dissemos em diversas ocasiões, o uso do artigo indefinido é algo flutuante e pode estar associado a intenções diversas. No entanto, neste caso particular, julgo que teremos ainda de trazer à colação o facto de em construções como a que se apresenta em (4) estarmos a lidar com uma palavra inglesa que se usa em frases traduzidas:

(4) «Faça login na sua conta.» («Login to your account»)

Poderemos ainda avançar uma outra possibilidade que se prende com o facto que na expressão «fazer login», estamos perante um uso de fazer como verbo leve. Ora, os verbos leves sofreram um processo de esvaziamento semântico e, por essa razão, selecionam um constituinte de natureza nominal que assumirá a centralidade da significação. Esta situação tem lugar com o verbo fazer em construções como «fazer aflição» (e não «fazer "a" aflição» ou «fazer "uma" aflição»)1. Nesta ótica...

Pergunta:

Gostaria de saber por que fazemos a contração da preposição de com o artigo definido a na expressão «coelho da Páscoa», mas não a fazemos na expressão «domingo de Páscoa».

Resposta:

A diferença entre as expressões apresentadas reside no facto de o nome próprio Páscoa ser ou não determinado por artigo definido, o que pode implicar algumas diferenças ligeiras relativamente àquilo que se refere. Note-se, porém, que com alguma frequência esta oscilação entre o uso ou não do artigo é opcional.

A ausência de artigo a determinar um nome pode estar associada à expressão de um valor referencial genérico de tipo, que se opõe à identificação de um exemplar desse tipo1. O uso do artigo definido contribui, muitas vezes, para associar ao nome um valor [+específico].

Assim, na expressão «domingo de Páscoa» não se identifica um domingo de uma Páscoa em particular. A expressão refere este dia de forma genérica, sem qualquer tipo de particularização.

Já na expressão «coelho da Páscoa», o nome Páscoa está determinado por artigo definido, o que contribui para distinguir coelhos com diferentes naturezas: «coelho da Páscoa», «coelho do Natal». Não obstante, as mesmas expressões podem surgir em construções sem o artigo definido: «coelho de Páscoa», «coelho de Natal», o que confirma a natureza opcional da construção.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Peres in Raposo et al. Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 791.

Pergunta:

Quanto à consulta sobre «nós todos», respondida em 08/4/2022, não há algo de redundante no emprego do pronome todos na frase em questão («Nós todos somos seus fãs») e em outras semelhantes?

Não bastaria dizer «Nós somos seus fãs», estando implícita a ideia de totalidade no pronome pessoal?

Obrigado.

Resposta:

Tem o consulente toda a razão na observação que faz ao que se afirma nesta resposta.

Com efeito, aí não nos pronunciámos sobre o facto de o valor do quantificador todos ser algo redundante na frase, o que leva a que seja preferível a sua omissão, uma vez que a frase apresentada em (1) detém praticamente o mesmo valor da que se apresenta em (1a);

(1) «Nós somos seus fãs.»

(1a) «Nós somos todos seus fãs.»

O uso de todos na frase apenas se justificará em situações em que se pretende enfatizar a quantidade e a uniformidade perante uma dada situação.

Este mesmo aspeto é reiterado por Miguel e Raposo na Gramática do Português, quando afirmam «O uso explícito de todos é usualmente evitado por ser redundante e por tornar o enunciado pragmática e estilisticamente “pesado”, a menos que o falante queira enfatizar o aspeto quantitativo»1.

Disponha sempre!

 

1. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 825.