Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «nós viemos para o almoço», o segmento «para o almoço» não desempenha a função de complemento (neste caso, oblíquo)?

Vi, numa aula do programa Estudo em Casa (RTP), a usarem este exemplo, mas classificando-o como modificador (grupo verbal).

Grata pelo esclarecimento.

Resposta:

O constituinte «para o almoço» desempenha, na frase em questão, a função de complemento oblíquo.

A identificação dos complementos de um verbo pode ser efetuada por meio da aplicação do teste da construção pseudoclivada. O teste mostra-nos quais os constituintes que podem ser afastados do verbo: estes desempenham a função de modificador. Os constituintes que tiverem de permanecer junto do verbo são seus complementos.

Apliquemos o teste à frase:

(1a) «O que nós fizemos foi vir para o almoço.»

(1b) «*O que nós fizemos para o almoço foi vir.»

O facto de a frase (1b) não ser aceitável indica que não podemos separar o constituinte «para o almoço» do verbo vir. Por essa mesma razão a frase (1a) já é aceitável. Este teste permite concluir que o constituinte em análise desempenha a função de complemento oblíquo.      

Disponha sempre!

Pergunta:

Estas duas frases são aceitáveis?

«Ontem, enquanto eu fiz o jantar, ele fez as sobremesas.»

«Ontem, enquanto eu fazia o jantar, ele fazia as sobremesas.»

Normalmente, enquanto está associado ao pretérito imperfeito quando se ensina português a estrangeiros, surgindo essa regra frequentemente em livros, para quando se trata de ações simultâneas no passado.

No entanto, a frase com o pretérito perfeito simples também me parece aceitável.

Muito obrigada pelo vosso trabalho.

Resposta:

As duas frases são aceitáveis embora perspetivem as situações de forma distinta. Assim, na frase (1), ambos os verbos se encontram no pretérito perfeito do indicativo:

(1) «Ontem, enquanto eu fiz o jantar, ele fez as sobremesas.»

A opção por este tempo verbal permite perspetivar a situação como concluída, deixando o seu limite final bem assinalado.

Já em (2) os verbos encontram-se no pretérito imperfeito do indicativo:

(2) «Ontem, enquanto eu fazia o jantar, ele fazia as sobremesas.»

A opção por este tempo verbal permite descrever a situação no seu decurso, sem que se definam os seus limites finais.

Estamos, deste modo, perante uma diferença muito fina que ocorre no plano do aspeto gramatical ao nível da perfetividade ou imperfetividade da situação descrita.

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual das seguintes frases está correta?

«Eu próprio/mesmo lhe disse a verdade», ou «Eu próprio/mesmo disse-lhe a verdade»?

Por outro lado, sabem dizer-me onde posso consultar uma lista com todas as palavram que provocam próclise?

Muito obrigado pela vossa atenção.

Resposta:

No que respeita à opção entre mesmo ou próprio, no caso em apreço, poderemos considerar as palavras sinónimas1, uma vez que significam “que se representam verdadeiramente”2.

Quanto à colocação do pronome, quando a palavra próprio (ou mesmo) se encontra antes do verbo, o pronome pode ser colocado em ênclise ou em próclise. Assim, ambas as frases apresentadas pelo consulente são possíveis:

(1) «Eu próprio/mesmo lhe disse a verdade.»

(2) «Eu próprio/mesmo disse-lhe a verdade.»

Não obstante, quando a palavra próprio (ou mesmo) é sentida como um focalizador (palavra onde reside a informação nuclear da frase), a tendência é de colocar o pronome em próclise.

Para mais informações sobre situações indutoras de próclise, vejam-se as respostas relacionadas.

Disponha sempre!

 

1. Note-se, todavia, que as palavras não são sinónimas em todos os contextos. Para outros casos, veja-se esta resposta.  

2. Cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. Ed. Verbo.

Pergunta:

Lendo alguns fóruns na Internet, deparei-me com o seguinte modelo de frase: «Jorge gosta de frutas porque faz bem.» Nota-se que há a conjunção porque, não sendo precedida de vírgula.

O fórum cita o porque explicativo e causal, citando suas diferenças, sendo uma delas a de que o porque causal não pode ser precedido de vírgula e estabelece uma causa entre as duas orações; neste caso, a causa de Jorge gostar de frutas deve-se ao fato de estas fazerem bem, o que explica a ausência de vírgula. No entanto, tal análise torna-se, de certa forma, muito subjetiva, gerando uma dúvida no leitor. Da mesma forma que o porque da frase pode ser entendido como causal, também pode ser entendido como explicativo; a explicação do motivo de Jorge gostar de frutas deve-se ao fato de elas fazerem bem.

Li por vários outros fóruns e sites atrás de métodos para diferenciá-los, mas não obtive sucesso.

Afinal, há algum método de diferenciá-los com exatidão ou podemos nos esbarrar nesse mesmo problema de ambiguidade na análise?

Grato.

Resposta:

A diferença entre orações causais e explicativas pode, com efeito, levantar dúvidas.

Não tratando aqui as situações que poderão relacionar-se com zonas de interpretação mais cinzenta, poderemos dizer que a diferença basilar entre estes dois tipos de orações se centra na causa real ou na causa de dicto.

A causa real é expressa pelas orações subordinadas causais: esta apresenta a causa, o motivo, a razão para a situação descrita na oração subordinante. Veja-se a frase:

(1) «O João caiu porque o Rui o empurrou.»

Em (1), o empurrão dado pelo Rui é apresentado como causa da queda do João. Esta é uma causa real, efetiva. Note-se ainda que neste tipo de relação causal a situação descrita na oração causal é, do ponto de vista temporal, anterior à situação descrita na oração subordinante.

A causa de dicto é expressa pelas orações coordenadas explicativas. Nestas, a oração explicativa apresenta não uma causa para a situação descrita na oração anterior, mas antes uma explicação do que o que se afirma nessa oração, tal como acontece em (2):

(2) «O João não deve estar em casa, porque não ouço barulho.»

A oração explicativa vem justificar a afirmação «O João não deve estar em casa», ou seja, explica como se chegou a essa conclusão. Com efeito, «não ouvir barulho» não é a causa para o facto de o João não estar em casa. Nestas orações está antes presente uma relação de justificação que identificamos muito claramente em situações como a que se apresenta em (3):

(3) «Cala-te, que o João chegou.»

A oração «que o João chegou» justifica a ordem que se dá na primeira oração.

Note-se ainda que a situação descrita numa oração coordenada explicativa não é temporalmente anterior à que se de...

Pergunta:

Qual a expressão correta: «Praticamente metade da superfície agrícola em Portugal são pastagens» ou «praticamente metade da superfície agrícola em Portugal é pastagens»?

Obrigada.

Resposta:

As duas frases são aceitáveis.

A questão colocada está relacionada com a possibilidade de concordância do verbo ser com o predicativo do sujeito em frases copulativas. Esta concordância é aceitável em diversos contextos que são assinalados por diferentes gramáticos (veja-se esta síntese de Carlos Rocha).

No caso em apreço, a concordância com o predicativo do sujeito é possível, uma vez que o verbo ser é equivalente a «ser constituído por», uma das situações previstas para a existência desta possibilidade de concordância.

Disponha sempre!