Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Revisando o marketing da minha empresa, me deparei com o seguinte trecho:

«O hiperespaço criado por Star Wars é uma dimensão alternativa que só pode ser alcançada viajando na velocidade da luz.»

Eu corrigi para «... é uma dimensão que só pode ser alcançada viajando-se à velocidade da luz», mas fiquei com um peso na consciência, como se eu houvesse cometido um erro.

Apresento outras circunstâncias que também me deixaram com dúvida:

2 – «O sucessor de um número natural é obtido somando (ou somando-se?) uma unidade a ele. Supondo (Supondo-se) que esse número natural é x, a soma entre seus 10 sucessores é:»

3 – «Representando (ou Representando-se) a situação na forma de diagrama, retira-se a interseção de cada conjunto e conclui-se que há 30 pessoas gostando apenas de pizza doce.»

4 – «Testando (ou Testando-se?) qualquer número inteiro no lugar de n, por exemplo 1, conclui-se que A é o conjunto dos números pares e B dos ímpares.»

5 – «Sabendo (ou Sabendo-se) as dimensões do cercado, basta obter o perímetro (2p) do retângulo de dimensões 20×25.»

Devo dizer que coloquei a partícula se em todas. Cometi algum erro?

Desde já agradeço.

Resposta:

As duas opções são aceitáveis, sendo que a diferença entre ambas poderá ser mínima.

As orações gerundivas podem ter um sujeito nulo (i.e., não expresso) quando o seu sujeito coincide com o da oração subordinante:

(1) «Chegando a casa, o João vai estudar.» (= O João chega a casa)

Esse sujeito poderá ser o próprio interlocutor a que se dirige o discurso:

(2) «Fazendo este trabalho, terás sucesso.» (=tu fazes este trabalho)

Neste e noutros casos, é também possível optar por uma construção de se impessoal, que permite atribuir à frase um grau de indeterminação associado ao facto de não se identificar o sujeito do verbo. É o que acontece em (3):

(3) «Descobriu-se a verdade sobre o caso.» (=alguém descobriu)

As situações descritas em (2) e (3) podem aplicar-se à frase apresentada pelo consulente:

(4) «O hiperespaço criado por Star Wars é uma dimensão alternativa que só pode ser alcançada viajando na velocidade da luz.»

(5) «O hiperespaço criado por Star Wars é uma dimensão alternativa que só pode ser alcançada viajando-se na velocidade da luz.»

Em (4), o sujeito do verbo no gerúndio pode estar presente no contexto (em frases anteriores) ou pode corresponder ao interlocutor (tu / você). Em (5), a construção de se impessoal determina uma valor de indefinição relativamente ao agente de viajar. Ora, se na frase (4) também não for possível identificar o sujeito do verbo no gerúndio, equivalendo este a alguém, o mesmo valor de indeterminação será ativado, o que leva a que as frases (4) e (5) tenham valores muito próximos.

Disponha sempre!

Pergunta:

Como explicar que com o nome dor se utiliza a preposição de, na maioria dos casos («dor de costas», «dor de dentes»), mas nalguns casos se utiliza com a preposição em («dor nos joelhos», «dor nas costas»)?

Resposta:

As opção por uma das duas preposições implica a mobilização de sentidos ligeiramente diferentes.

A preposição em tem um valor de localização espacial. Assim, nas expressões «dor nas costas» ou «dor nos joelhos» indica-se o local onde a dor ocorre1.

A preposição de tem um valor que indica o origem ou a fonte de algo. Desta forma, as expressões «dor de costas» ou «dor de joelhos» apontam para o local onde a dor tem origem2.

Disponha sempre!

 

1. Raposo e Xavier in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1547-1548.

2. Idem, ibid., pp. 1548-1550.

Pergunta:

A nomenclatura relacionada com a área específica da gramática tem vindo a alterar-se profundamente, desde o pronome oblíquo ao sujeito nulo; desde a expansão dos grupos verbais e nominais ao desaparecimento do condicional como modo, substituído agora pelo futuro perfeito ou futuro do pretérito.

Fico inquieta com tanta alteração que remove a lógica em que assentou toda a minha aprendizagem.

Mais do que uma pergunta, trata-se de um desabafo.

Obrigada.

Resposta:

Uma das características do conhecimento científico é a sua evolução constante. A investigação realizada e as novas propostas de análise dos fenómenos permitem que o conhecimento avance em qualquer âmbito de estudo. Nos estudos gramaticais verificamos também esta dinâmica, que vai permitindo uma abordagem mais rigorosa e alargada dos fenómenos da língua. Diferentes gramáticas e trabalhos específicos de investigação têm desenvolvido este percurso. Por seu turno, o sistema escolar tem vindo a incorporar alguns destes avanços, convertendo-os em conteúdos a estudar em diferentes momentos de ensino.

Foi neste âmbito, por exemplo, que o complemento circunstancial deixou de ser considerado pelos programas de Português e se passou a estudar as funções de modificador e de complemento oblíquo. Igualmente neste contexto e a partir da entrada em vigor da Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário, propôs-se a introdução do termo sujeito nulo para as situações em que o sujeito não tem realização lexical. O Dicionário Terminológico, atual documento de referência para o ensino de português, mantém também a designação. No entanto, com o Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico (2015), este conceito d...

Pergunta:

Considere-se o seguinte excerto:

«O único viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escritório que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado. Este rapazito coleccionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de transportes; tinha mapas – uns arrancados de periódicos, outros que pedia aqui e ali –; tinha, recortadas de jornais e revistas, ilustrações de paisagens, gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios. Ia às agências de turismo, em nome de um escritório hipotético, ou talvez em nome de qualquer escritório existente, possivelmente o próprio onde estava, e pedia folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos de viagens para a Índia, folhetos dando as ligações entre Portugal e a Austrália.»

O segmento textual «Este rapazito coleccionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de transportes» evidencia o respeito por que princípios da coerência textual? Respeita todos os princípios do mesmo modo; ou, por outro lado, um especialmente, em particular (por exemplo, o da relevância ou o da não contradição, em havendo a necessidade de se elencar só um)?

Muito obrigado.

Resposta:

O excerto apresentado intitula-se “O único viajante com verdadeira alma” e é retirado de O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares.

Relativamente à coerência textual, é importante que se diga, antes de mais, que esta se vai construindo ao longo de todo o texto, por meio de um processo cognitivo, encetado pelo leitor, que vai conferindo sentido e relação aos vários segmentos textuais.

A coerência assenta em três princípios básicos, que se relacionam com a forma como o pensamento humano se estrutura e como este organiza o mundo real:

i) o princípio da não contradição: as ideias / segmentos textuais não se devem contradizer;

ii) o princípio da não tautologia: as ideias não se devem repetir ao longo do texto;

iii) o princípio da relevância: as ideias do texto devem relacionar-se entre si, de modo que os diferentes segmentos não criem incoerência entre si.

Um texto coerente deve ainda evidenciar progressão temática e continuidade de ideias.

O segmento apresentado pelo consulente respeita o princípio da não tautologia dado que não repete ideias anteriores. Também respeita o princípio da relevância, dado que este segmento dá continuidade ao anterior, sendo relevante para o que ficou dito. Já o princípio da não contradição parece, numa primeira leitura, não ser respeitado. Com efeito, o segmento inicial refere um viajante, enquanto o segmento em análise autoriza a inferência de que o rapazinho não era viajante.  Não obstante, afirma Fonseca que o leitor faz sempre um esforço de coerência que se orienta no sentido de procurar reconstruir a total...

Pergunta:

A construção «estiveram presentes todos exceto….» está correta? É uma frase que insistentemente surge na abertura de atas.

Se estiveram todos não há exceções, o que me recorda uma outra construção que, embora também não me pareça completamente correta, considero mais aceitável por conter um "reforço" da ideia.

É ela: «Todos, sem exceção.»

Obrigada.

Resposta:

O uso em causa faz parte de um conjunto de expressões formulaicas usadas na redação de atas. Todos aponta para um valor de quantificação universal que, ao ser associado a exceto, acaba por ser reduzido. Deste modo, todos passa a designar a totalidade do universo referido, sem considerar os elementos abrangidos por exceto.   

Por seu turno, «todos sem exceção» é uma expressão fixa com um cariz redundante que serve para reforçar a ideia de totalidade do universo referido. Esta construção joga com a que analisámos anteriormente, evidenciando que, neste caso, não há lugar a reduções do universo referido.

Disponha sempre!