Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Ouço com frequência, especialmente no telejornal, algo de que dou exemplo – «os antibióticos perderam eficácia devido à capacidade que as bactérias têm de lhes resistirem...» – quando, penso, deveriam dizer «devido à capacidade que as bactérias têm de lhes resistir».

Num simples exercício para verificar a correção da mensagem: as bactérias têm capacidade de quê? – de resistir (aos antibióticos) e não de resistirem...

Resposta:

No caso em análise, identificamos a seguinte estrutura: o nome capacidade é acompanhado de uma oração subordinada adjetiva relativa. Verificamos que, nesta fase, o sujeito da oração relativa (bactérias) é diferente do sujeito da oração subordinante (antibióticos). Ora, nestes casos, quando o sujeito é diferente e está expresso, a concordância do infinitivo deve fazer-se com o seu sujeito, como acontece em (1):

(1) «Ele deu às crianças ordem para brincarem.»

Contudo, esta indicação é discutida por diversos gramáticos, pelo que não poderemos falar de uma regra, mas antes de uma tendência. Deste modo, a frase (2) também será aceitável:

(2) «Ele deu às crianças ordem para brincar.»

Por esta razão, será aceitável a construção com ou sem infinitivo flexionado:

(3) «Os antibióticos perderam eficácia devido à capacidade que as bactérias têm de lhes resistir(em).»

Disponha sempre!

Pergunta:

dicionário de Caldas Aulete dá para a locução adverbial «ao abrigo de» o valor de «defendido contra» em vez de «ao resguardo de».

Porém, como interpretar «um direito ao abrigo duma lei» como "um direito defendido contra"?

Muito obrigado!

Resposta:

A locução preposicional «ao abrigo de» pode, com efeito, ter o sentido de «defendido de», «protegido contra»1. Este sentido é ativado numa frase como a que se apresenta em (1):

(1) «Foi debaixo do telheiro ao abrigo da chuva.»

Esta locução pode também ser usada com o sentido de «autorizado por», «em conformidade com», o que se verifica em (2):

(2) «Foi transferida ao abrigo da lei da mobilidade.»

Este segundo sentido é o que estará presente na expressão apresentada pelo consulente, que será equivalente a:

(3) «Este é um direito autorizado pela lei / em conformidade com o previsto na lei.»

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea.

Pergunta:

A expressão «sinto-te a falta» em vez de «sinto a tua falta» está gramatical e sintaticamente correta? Se sim, serão intercambiáveis em termos de significado?

Desde já obrigado.

Resposta:

Comecemos por considerar a construção «sinto a falta» que, sem contexto e sem qualquer complemento, não é aceitável.

O nome falta pede um complemento introduzido pela preposição de, que lhe completa o sentido:

(1) «Sinto a falta do João.»

Ora, se a entidade sobre a qual recai o sentimento de falta for uma 2.ª pessoa, o sintagma introduzido por de será substituído pelo possessivo tua:

(2) «Sinto a tua falta.»

Por esta razão, não é aceitável a expressão «sinto a falta» sem a verbalização do complemento de falta

Relativamente à construção «sinto-te a falta», estamos perante um caso de pronominalização do complemento do nome falta, que, para a 3.ª pessoa do singular, está atestado, como se verifica em (3) e (4):

(3) «É o doido que em nós prega e nos deixa aturdidos. Às vezes consigo afastá-lo, mas sucede que fico sempre com pena: se o ouvisse talvez fosse mais feliz e mais desgraçado.. Desdenho-o, e sinto-lhe a falta quando o não tenho ao pé de mim»  (Raul Brandão, Húmus)

(4) «E talvez ela chorasse, e lhe sentisse a falta.» (Eça de Queirós, Alves e Companhia)

Esta construção é equivalente a «sinto a sua falta» ou «sinto a falta dele». 

Ora, o uso de 3.ª pessoa, será compreen...

Pergunta:

Será possível que tem gente que não sabe o significado da palavra de pior, por aqui, no Brasil para cometer essa verdadeira e imensa atrocidade («menos pior»...)?

Muitíssimo obrigado!

Resposta:

O uso de pior está previsto nos compêndios gramaticais.

A forma pior substitui a construção «mais mal», quando mal é um advérbio, como acontece em (1):

(1) «Os meus alunos escrevem pior que os teus.»

Pior também se usa quando mais se combina com o adjetivo mau:

(2) «Esta receita é pior que a do João.»

Todavia se mais se combinar com uma construção adjetival ou participial iniciada por mal não se usa a forma pior1:

(3) «O texto do João está mais mal escrito que o do António.»

(4) «O modelo do Rafael está mais mal concebido do que o do João.»

Podemos, então, concluir que pior é uma forma do comparativo de superioridade, pelo que se quisermos construir um comparativo de inferioridade, não poderemos usar «menos pior». Teremos, antes de optar por «menos mal/mau».

Disponha sempre!

 

1. Não obstante, em alguns autores assinalamos o uso da formas sintética pior em construções onde seria expectável o aparecimento de «mais bem» ou «mais mal». Para mais informação consulte-se esta resposta.

Pergunta:

Gostaria de perceber se na expressão «Chora-me o coração que se enche e que se abisma», da segunda parte de "O sentimento dum ocidental" de Cesário Verde, está presente uma hipálage, personificação ou metáfora.

Ou se estão presentes todas estas figuras de estilo, mas a metáfora é mais evidente e abrangente.

Desde já, obrigada!

Resposta:

De acordo com o E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia, os recursos referidos pela consulente têm as seguintes características:

i) a hipálage é um recurso expressivo que consiste na «atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionado»;

ii) a personificação expressa uma «perspectiva animista da realidade não humana sem vida»;

iii) a metáfora «possibilita a expressão de sentimentos, emoções e ideias de modo imaginativo e inovador por meio de uma associação de semelhança implícita entre dois elementos.».

Ora, por um lado, atendendo a que o recurso incide sobre o coração, elemento que está intimamente ligado ao eu, não poderemos considerar que existe efetivamente transferência das características de uma realidade para outra, pelo que não estamos perante uma hipálage.

Por outro lado, não poderemos considerar que a expressão evoca efetivamente uma personificação, uma vez que não se trata efetivamente de atribuir características humanas a uma realidade não humana.

Por estas razões, estamos em crer que a classificação mais ajustada à realidade criada pelo verso em apreço será a metáfora, uma vez que ela pretende expressar o sentimento de tristeza do eu, por meio do choro que se atribui ao coração.

Disponha sempre!