Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostava de saber que situações nos obrigam, necessariamente, ao uso do pronome relativo o qual (e suas flexões).

Já sei que quando temos uma preposição dissilábica antes do antecedente (como por exemplo durante, sobre, etc.) somos obrigados a usar o qual, mas excluindo estas situações, que outras há em que não possamos usar que e somos forçados a usar o qual?

Obrigada.

Resposta:

A locução o qual integra o conjunto de palavras/locuções relativas que têm a função de introduzir uma oração subordinada relativa.

Em termos gerais, a locução só é usada quando a oração relativa tem antecedente (1), não sendo possível a sua integração em orações relativas sem antecedente (2) ou orações relativas de frase (3):

(1) «O livro, o qual me foi oferecido por amigos, era muito interessante.»

(2) «*O qual foi oferecido por amigos era muito interessante.»

(3) «*Ele provocou esta situação, o qual me aborreceu imenso.»

Podemos identificar ainda contextos de uso nos quais a locução o qual é aconselhável, possível ou interdita1:

(i) tem uso obrigatório (ou preferencial) quando introduzida por preposição de duas ou mais sílabas ou por locução prepositiva, com antecedente [-humano]:

(4) «O livro sobre o qual escreveste já ganhou um prémio.»

(5) «O livro acerca do qual fiz um trabalho é um dos meus favoritos.»

(ii) quando o antecedente é [+humano], a locução o qual só é obrigatória com a preposição sem:

(6) «Este é o aluno sem o qual / ?sem quem a aula não seria igual.»

(7) «O colega com quem/o qual trabalhei ajudou-me imenso.»

(iii) introduzido por qualquer preposição, o qual surge livremente em orações com função de modificador restritivo de nome ou de modificador apositivo de nome:

(8) «Os alunos aos quais atribuí esta função não falharam....

Pergunta:

«[...] Ao todo, os cientistas da Universidade de Quioto dissecaram o cérebro de 51 cobaias humanas. Dissecar, neste caso, significa sujeitar 26 mulheres e 25 homens a exames psicológicos e neuronais. Os primeiros tiveram como referência a Escala de Felicidade Subjetiva – inventada por Lyubomirsky e Lepper em 1999 e que até hoje é usada pelos psicólogos. O instrumento serviu para medir o grau de felicidade geral de cada um dos objetos das experiências e quão intensamente foram capazes de sentir as emoções – tanto as negativas como as positivas. A esses objetivos acrescentou-se o nível de satisfação com as próprias vidas. Os segundos testes envolveram o uso de um aparelho de ressonância magnética, que captou as imagens do cérebro de cada um dos participantes. E os mais felizes, concluem os autores do estudo, tinham sempre mais massa cinzenta naquela área do cérebro [....].»

Pergunta: os vocábulos «cobaias humanas», «26 mulheres e 25 homens» e «participantes» mostram a presença de um mecanismo de:

A – coesão lexical.
B – coesão referencial.
C – coesão temporal.
D – coesão interfrásica.

 

Resposta:

No excerto textual apresentado, estabelece-se uma relação de coesão lexical por substituição entre os termos «51 cobaias humanas», «26 mulheres e 25 homens» e «cada um dos participantes».

Esta é uma relação interna ao texto, ou seja, cria-se, neste texto particular, dada a relação que os constituintes estabelecem entre si. Não se trata de uma relação de coesão referencial porque os termos nucleares de cada constituinte têm uma referência autónoma, que não depende de um termo anterior ou posterior. Pelo contrário, os termos novos vão introduzindo uma redefinição de significados que contribui para o enriquecimento da informação.

Assim, «26 mulheres e 25 homens» relaciona-se com «51 cobaias humanas» funcionando com dois merónimos que acrescentam informação quanto aos géneros dos seres humanos envolvidos na experiência.

Por sua vez, o constituinte «cada um dos participantes» relaciona-se com «51 cobaias humanas», funcionando como expressão sinónima que ativa a informação de que estas «cobaias humanas» são participantes (num estudo).

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O que o disfemismo diz de nós
Sobre as metáforas de animais usadas como injúria

disfemismo é colocado com muita frequência ao serviço do insulto. Inúmeros recursos linguísticos são mobilizados para este processo, entre os quais se encontra a metáfora. Mas, insultar alguém com um nome de animal pode dizer muito de quem o faz, como se  explica neste apontamento da autora.

Pergunta:

Na frase «Enquanto não trouxermos o estrangeiro até à nossa língua, teremos ficado apenas a meio do caminho», qual é o valor da conjunção enquanto?

Muito obrigada.

Resposta:

A conjunção enquanto tem um valor temporal.

Habitualmente, a conjunção enquanto introduz uma oração que serve para localizar o intervalo de tempo no qual decorre a situação da oração subordinante:

(1) «Enquanto o João estava a estudar, a Rita fez um bolo.

Em (1), a ação de «fazer um bolo» decorre no interior do intervalo de tempo que dura a ação de «estar a estudar», realizada pelo João.

No caso da frase apresentada, a conjunção enquanto integra o advérbio não no interior da oração que introduz. Neste caso, a oração define um limite temporal para a realização da situação da oração principal, tendo a conjunção um valor semelhante a «até (que)»1:

(2) «Enquanto não trouxermos o estrangeiro até à nossa língua, teremos ficado apenas a meio do caminho.»

(3) «Até trazermos o estrangeiro até à nossa língua, teremos ficado apenas a meio do caminho.»

Ou seja, nesta construção, a oração subordinada temporal indica o limite (o momento em que se traz o estrangeiro para a nossa língua) a partir do qual se deixa de realizar a situação expressa na subordinante (passando a ter lugar o seu inverso, ou seja, deixar de estar apenas a meio do caminho).

Disponha sempre!

 

1. cf. Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2005-2006.

Pergunta:

Na frase «o narrador encena aqueles modos de uma escrita como antídoto» retirado do artigo de Diogo Vaz Pinto disponível em a modalidade que ali se encontra presente é epistémica com valor de certeza ou apreciativa?

Grata pela atenção.

Resposta:

O enunciado apresentado é retirado de uma frase mais longa, que aqui transcrevemos na íntegra:

«E nas suas refracções, nas personagens que se revezam relançando a linha – além de Bernfried Järvi, temos Milo, Matthäus Geschke ou Pagreus –, o narrador encena aqueles modos de uma escrita como antídoto, um talento incerto para abdicar do modo de composição mais verosímil, salvar-nos da esterilidade de um realismo imbecil, para nos entregar a uma desordem enunciativa que é outra forma de reger o mundo, quando, mais do que sentido, do que este precisa é que lhe dêem corda.»1

Nesta frase, a modalidade expressa é a epistémica com valor de certeza.

Na modalidade apreciativa, o locutor apresenta um juízo de valor positivo ou negativo sobre uma situação, ou seja, avalia o conteúdo dos factos que refere. É exemplo da modalidade apreciativa:

(1) «Agrada-me que tenhas escrito este livro.»

Nesta frase, o locutor faz um juízo de valor positivo relativamente à proposição «tu escreveste este livro».

A modalidade epistémica, por sua vez, «prende-se com graus de certeza ou avaliação da probabilidade acerca do conteúdo proposicional da frase.» (Oliveira e Mendes in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian. p. 623). Assim, na frase (2), o locutor exprime a certeza relativamente à verdade da proposição «o livro vai ser um sucesso».

(2) «Estou certo que o livro vai ser um sucesso.»

No caso da frase apresentada pela consulente, não encon...