Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«A próclise é de rigor quando o verbo vem antecedido de certos advérbios (ainda, , sempre, , talvez, etc), ou expressões adverbiais, e não há pausa que os separe.»

A minha dúvida é esse etc. Quais são os advérbios que atraem os pronomes?

Felicidades pelo vosso trabalho!

Obrigado!

Resposta:

Em português europeu, podemos identificar um conjunto de advérbios que são atratores de próclise, ou seja, atraem o pronome para antes do verbo. Entre eles encontram-se três tipos de advérbios:

(i) os advérbios focalizadores, que são aqueles que «realçam, de forma diferentes, uma entidade ou grupo de entidades na perspetiva da sua pertença a um determinado conjunto de elementos, que pode ser recuperado através do contexto discursivo»1. Estes advérbios são atratores de próclise quando colocados antes do verbo. Entre eles encontram-se os advérbios focalizadores exclusivos (apenas, somente, só, logo, antes), os inclusivos (também, até mesmo), os aspetuais (já, ainda, quase) e o advérbio talvez2;

(ii) os advérbios enfatizadores: estes advérbios contribuem para intensificar e enfatizar uma afirmação e são atratores de próclise quando em posição pré-verbal. Entre eles estão os advérbios bem, lá, até, logo, sempre, já3:

(1) «Eu bem o vi chegar.»

(2) «Ele sempre me avisou.»

(iii) os advérbios focalizados: advérbios nos quais se coloca o foco e que podem ser objeto de clivagem, como acontece em (4):

(3) «Depois te contarei a verdade.»

(4) «Só depois te contarei a verdade.»4

Entre os advérbios que admitem focalização, estão, por exemplo, sempre, logo, ali, rapidamente5.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas gentis palavras.

Disponha sempr...

Pergunta:

«Fazes mal em provocar-me.»

Gostaria de saber, na frase acima:

1. como se classifica sintaticamente o constituinte «mal» e a oração «em provocar-me»;

2. a que subclasse pertence o verbo fazer.

Parabéns pelo vosso trabalho.

Obrigada.

Resposta:

A palavra mal pertence à classe do nome e tem um sentido equivalente a “malefício, dano”. A sua associação ao verbo fazer pode ser interpretada de duas formas:

(i) Mal desempenha a função de complemento direto do verbo fazer (que é um verbo transitivo direto), como o comprova a possibilidade de pronominalização (recorremos à flexão na 3.ª pessoa do singular para facilitar a análise):

(1) «Ele faz mal.» = «Ele fá-lo.»

(ii) Mal forma com o verbo fazer um predicador complexo1. A comprová-lo parece encontrar-se o facto de esta associação formar uma expressão semi-idiomática que equivale a “errar”:

(2) «Ele faz mal.» = «Ele erra.»

Em qualquer das interpretações, a oração «em provocar-me» tem a função de modificador do grupo verbal. Trata-se de uma oração infinitiva introduzida pela preposição em, que pode ser interpretada como equivalente a uma oração subordinada adverbial causal:

(3) «Fazes mal (=Erras) porque me provocas.»

ou a uma oração subordinada adverbial temporal
(4) «Fazes mal (=Erras) quando me provocas.»

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras.

Disponha sempre!

 

1. Neste caso, o predicador complexo é um constituinte formado por um verbo leve (ou de suporte) e o constituinte nominal «mal». Esta expressão caracteriza-se inclusive por um certo grau de cristalização. (cf. Gonçalves e Raposo in Rap...

Pergunta:

Qual/quais os recursos expressivos presentes nos seguintes versos do poema de Eugénio de Andrade:

«e gravemente, comedidas,/ param as fontes a beber-te a face.»

Resposta:

O verso apresentado integra o poema “quando em silêncio passas” (Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos).

Podemos considerar que neste verso está presente uma hipálage, um hipérbato e uma metáfora.

A hipálage «consiste na atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionado» (in E-dicionário de Termos literários). Neste caso, o sujeito lírico atribui às fontes as qualidades presentes no advérbio gravemente e no adjetivo comedidas, que não lhes pertencem.

Existe um hipérbato, que consiste na alteração da ordem natural dos elementos da frase.

Sem procurar complexificar muito a análise, podemos também identificar uma metáfora (transferência metafórica) em «as fontes a beber-te a face», que aponta para a vitalidade do ser amado que influencia a própria natureza, invertendo a normalidade das situações (o amado beberia nas fontes).

Disponha sempre!

Pergunta:

Frases a ter em conta:

(1) Faltavam alguns dias para a Ana casar.

(2) Só lhe falta ser benzida para que a ponham num altar.

Vi, num trabalho em linha, os constituintes «alguns dias» (frase (1)) e «ser benzida» (frase (2)) classificados como «complemento direto». Não serão antes o «sujeito» do verbo «faltar»?

No mesmo texto, classificava-se como subordinadas adverbiais finais as orações introduzidas por «para», nas frases acima transcritas. Afigura-se-me equívoca esta classificação, porque:

1. as orações iniciadas por «para» não me parecem ser modificadores da oração subordinante;

2. é o verbo «faltar» que rege a preposição «para» (à semelhança de esforçar-se para),.

As orações «para a Ana casar» (frase 1)) e «para que a ponham num altar» (frase 2)) não são antes subordinadas substantivas completivas, com a função de complemento oblíquo?

Parabéns pelo excelente serviço público, que é o vosso trabalho no Ciberdúvidas.

Obrigado. AHV

Resposta:

Os constituintes «alguns dias» e «ser benzida» desempenham a função de sujeito.

O verbo faltar é um verbo pessoal, ou seja, constrói-se com sujeito, que, no caso das frases apresentadas, está expresso. Para além disso, é um verbo transitivo indireto, o que significa que não se constrói com complemento direto, mas sim com complemento indireto. Assim, na frase (1), o sujeito é «alguns dias», pelo que o verbo deve concordar com o sujeito flexionando na 3.ª pessoa do plural:

(1) «Faltavam alguns dias para a Ana casar.»

Na segunda frase, o sujeito é o verbo na forma passiva «ser benzida», pelo que o verbo deve flexionar na 3.ª pessoa do singular:

(2) «Só lhe falta ser benzida para que a ponham num altar.

No que respeita à classificação das orações não finitas que surgem em cada frase, relativamente à segunda frase apresentada pelo consulente, verificamos que se estabelece uma relação de finalidade entre a oração subordinante e a subordinada («ser benzida» terá como fim a colocação no altar), pelo que a oração «para que a ponham num altar» é subordinada adverbial final.

No caso da primeira frase, estamos perante uma oração reduzida de infinitivo1, introduzida pela preposição para. Estas orações são equivalentes a orações introduzidas pela locução conjuncional com o mesmo valor (uma oração desdobrada). Neste caso, a frase apresentada é equivalente a (5):

(5) «Faltavam alguns dias para que a Ana casasse.»

Bechara apresenta como exemplo de oração subordinada adverbial final a seguinte frase:

(5) «Falta pouco para que isto suceda.»

que ilustra uma finalidade não de um facto («de re»), mas do que é dito ou pensado («de dicto...

Pergunta:

Qual a classe e subclasse de «dupla» na expressão «de forma dupla»?

Não me parece que seja um adjetivo numeral, pelo facto de não expressar uma ordem. Será então um quantificador numeral multiplicativo, embora surja após o nome?

Resposta:

Trata-se de um adjetivo qualificativo.

A palavra dupla não integra a classe dos adjetivos numerais nem a dos quantificadores numerais pelas razões que se apresentam de seguida:

(i) Os adjetivos numerais são palavras que expressam a ordenação de elementos, como acontece em (1):

(1) «O primeiro aluno chegou, o segundo aluno já está a chegar, mas o terceiro aluno ainda não se vê.»

São, portanto, adjetivos numerais as palavras primeiro, segundo, terceiro centésimo, etc.

(ii) Os quantificadores numerais multiplicativos são usados em «quantificação de contagem e em quantificação de medição»1, como acontece com dobro, triplo:

(2) «Ele escreveu um texto com o dobro do tamanho permitido.»

(3) «Ele ganhou o triplo do dinheiro previsto inicialmente.»

No interior do constituinte apresentado, a palavra dupla parece significar «que apresenta duas características, dois componentes, duas funções, etc.»(cf. Dicionário Houaiss), pelo que estamos perante um adjetivo qualificativo, o que explica também a sua colocação pós-nominal e a concordância com o nome modificado.

Disponha sempre!

 

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