Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«No mês passado, eles...... (partir) para França.»

«Quando era pequeno ...... ( brincar) contigo.»

Será que posso utilizar o pretérito perfeito e imperfeito nas duas frases?

Obrigada.

Resposta:

Na segunda frase são possíveis os dois tempos verbais, enquanto na primeira é expectável o recurso ao pretérito perfeito de indicativo.

Na primeira frase apresentada, o tempo verbal esperado será o pretérito perfeito:

(1) «No mês passado, eles partiram para França.»

Tal acontece porque, nesta frase, combinam-se uma expressão de valor temporal que localiza temporalmente a situação («No mês passado») com o verbo partir, que representa uma situação sem duração temporal interna. Por esta razão, o verbo partir não é compatível com expressões de duração:

(2) «*O João partiu durante duas horas.»

A combinação da expressão de localização temporal com o verbo partir leva a que o recurso ao pretérito imperfeito seja estranho, pois este tempo contribuiria para a construção de uma situação que se prolonga no tempo (o que, para o verbo em questão, não é viável). Assim, o recurso ao pretérito imperfeito só seria possível caso a frase incluísse outros elementos de localização temporal, como em (3):

(3) «No mês passado, eles partiam para França quando o João chegou.»

Na segunda frase apresentada pela consulente, é possível optar pelo pretérito perfeito do indicativo ou pelo pretérito imperfeito. No primeiro caso, a situação descrita (brincar) inclui-se no intervalo de tempo «ser pequeno» e é perspetivada como um evento de caráter momentâneo ou único:

(4) «Quando era pequeno, brinquei contigo.»

Se se optar pelo pretérito imperfeito, a situação (brincar) é descrita como estando incluída no intervalo de tempo denotado pela oração subordinada («quando era pequeno»), tendo um

Pergunta:

Vi uma entrevista de Nélida Piñón, notei alguns trechos e resolvi cá transcrevê-los: Nós nos empenhamos para construir uma cultura, uma sociedade que quando estejamos* liberados, sejamos* soberanos de nós próprios, tenhamos uma literatura; e tenhamos uma Academia como a nossa, de Machado de Assis. 1) É possível e correto usar o presente do subjuntivo com valor de futuro? (Estejamos → estivermos; sejamos → formos) 2) Depois das conjunções "se" e "quando" é obrigatório o uso do futuro do subjuntivo, ou são possíveis outras construções? "Se alguém vir esta carta..." Ou Se alguém ver esta carta..."? "Se o sol se pôr" ou "se o sol se puser"? 3) A pontuação está corretamente empregada? Tenho um pouco de dificuldade em transcrever certas falas.

Resposta:

O texto apresentado resulta aparentemente de uma transcrição de uma entrevista oral. Sendo a oralidade caracterizada por hesitações e reformulações que se ficam a dever à formulação instantânea do texto, esta é mais passível de apresentar incorreções.

A frase apresentada pode ser aperfeiçoada na escrita através da introdução de uma preposição antes do pronome relativo que:

(1) «Nós nos empenhamos para construir uma cultura, uma sociedade em que […]»

Para respondermos às questões colocada, comecemos por dividir a frase nas orações que a compõem:

 

(2) «[Nós nos empenhamos para construir uma cultura, uma sociedade]oração subordinante [ [em] que [quando estejamos* liberados]oração sub.adv.temporal, sejamos soberanos de nós próprios, [tenhamos uma literatura]oração coordenada copulativa; [e tenhamos uma Academia como a nossa, de Machado de Assis]oração coordenada copulativa]oração subordinada adjetiva relativa»

 

A questão apresentada no ponto 1) está relacionada com o uso da conjunção quando, que introduz uma oração subordinada adverbial temporal, localizando a situação expressa no interior da oração subordinada relativamente à expressa na oração subordinante (como anterior, simultânea ou posterior). No caso de se pretender marcar uma situação futura relativamente ao tempo da enunciação, o futuro do conjuntivo é geralmente o tempo/modo escolhido. Assim sendo, o verbo da oração subordinada temporal na frase em análise deverá estar flexionado no futuro do conjuntivo:

(2a) «[…] quando estivermos liberados […]»

No que respeita à oração ...

Pergunta:

Congratulo o sítio pelo trabalho extraordinário que tem vindo a realizar e agradeço antecipadamente qualquer comentário e informação sobre o que apresento.

É correto dizer «gravitar em redor / à volta desta história», ou trata-se de um pleonasmo desnecessário, uma vez que gravitar significa «à volta de»?

Será mais adequado «gravitar nesta história»?

Resposta:

O verbo gravitar, na sua aceção no âmbito da Física/Astronomia, pode significar “tender para um ponto determinado, em virtude da força de gravitação”, uso patente em (1):

(1) «[…] a Lua lembra-se por exemplo de cair na Terra, ou esta de gravitar distraidamente para o Sol.» (J.R. Miguéis, Escola do Paraíso. p. 207)

Neste contexto científico, o verbo gravitar pode também ser usado com o significado de «girar continuamente em volta de um ponto», como se verifica em (2):

(2) «Estes quatro pequenos corpos celestes […] gravitam em torno de Júpiter, segundo órbitas parabólicas […].» (P. Botelheiro, «Meteorito», in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. p. 471)1.

A expressão apresentada pelo consulente ativa este segundo sentido e, neste contexto, é habitual identificar o ponto em torno do qual ocorre a rotação. Assim, não estamos perante uma verdadeira redundância, uma vez que se trata de um constituinte que, embora seja um modificador, ajuda a ativar este sentido particular.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça.

Ficamos ao dispor!

 

Pergunta:

A frase em baixo está correcta?

«Relativamente ao frio, pouco pode-se fazer.»

Ou será mais correcto:«"(...) pouco se pode fazer»?

Na minha opinião acho que as duas estão bem mas, neste contexto, gosto mais de como soa a última -- gostaria de saber a vossa opinião. (Imagino que algures na base de dados já deva existir resposta para dúvida similar -- desde já, peço desculpa.)

Obrigado e parabéns pelos 23 anos (participo pouco mas conhece-vos desde, pelo menos, 1997!)

Resposta:

Na frase apresentada, o pronome clítico deve ser colocado antes do verbo, ou seja, em posição proclítica.

A colocação não marcada dos pronomes clíticos é a enclítica, isto é, depois da forma verbal, como em (1):

(1) «O manual de procedimento explicou-me como agir.»

Há, contudo, palavras que atraem os pronomes para antes do verbo. Entre elas encontram-se as palavras que expressam quantificação1. Neste grupo, inclui-se o advérbio pouco, que surge na frase apresentada. Este advérbio, quando colocado antes do verbo, atrai o pronome para a posição proclítica, o que se observa no contraste entre (2) e (3):

(2) «Relativamente ao frio, sabe-se como proceder.»

(3) «Relativamente ao frio, pouco se sabe sobre como proceder.»

Pelo exposto, na frase apresentada pelo consulente, o pronome deve ter colocação proclítica:

(4) «Relativamente ao frio, pouco se pode fazer.»

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas felicitações com votos de que continue a acompanhar os nossos trabalhos!

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento sobre a ação destas palavras quantificadoras, cf. Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2244 – 2248.

Pergunta:

«Hoje apetece-me comer peixe.»

Nessa frase o pronome há de estar antes ou depois do verbo? Na minha opinião acho que deve estar antes, pois temos um advérbio e não há vírgula.

Escrevo-lhe porque encontrei essa frase em um texto ( escrito por um português) e deixou-me confusa. Qual é a forma correta?

Também gostava de saber se há uma gramática que trate esse tema detalhadamente, pois tenho muita curiosidade.

Obrigada.

Resposta:

Na frase apresentada, em português europeu, o pronome é colocado depois do verbo.

A próclise do pronome, ou seja, a sua colocação antes do verbo, é condicionada por um conjunto de contextos sintáticos: a negação, a quantificação, a focalização e a ênfase.

A operação de focalização é assegurada pelos advérbios focalizadores, que são aqueles que «realçam, de forma diferentes, uma entidade ou grupo de entidades na perspetiva da sua pertença a um determinado conjunto de elementos, que pode ser recuperado através do contexto discursivo»1. Entre estes advérbios encontramos os focalizadores exclusivos (apenas, só, antes …), os focalizadores inclusivos (também, até, mesmo …) e o focalizador de modalidade talvez. Estes advérbios focalizadores, quando colocados antes do verbo, funcionam como atractores de próclise¸ levando à colocação do pronome clítico antes do verbo:

(1) «O João disse-me a verdade.»

(2) «Talvez o João me diga a verdade.»

Assim sendo, uma vez que o advérbio hoje, que integra a frase apresentada, não é focalizador (mas, antes, temporal), não cria um contexto sintático que exija a próclise, pelo que o pronome é colocado após o verbo, em posição enclítica2 3:

(3) «Hoje apetece-me comer peixe.»

Disponha sempre!

 

1. Raposo in Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1667.

2. No caso da variante de português do Brasil, a posição por defeito do pronome clítico é proclít...