Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
46K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Para abordar o assunto do domínio da língua portuguesa sobre os povos, são necessários delicadeza e conhecimento, inteligência e desassombro em dose máxima», qual o valor aspetual e modal presentes?

Resposta:

A frase apresentada integra um texto da escritora Hélia Correia, intitulado Ditosa língua, que foi por ela própria lido na cerimónia de entrega do prémio Camões (que recebeu em 2015), tendo sido publicado no jornal Público em 8 de julho 2015.

Relativamente ao aspeto lexical, a frase expressa um estado (situação estativa), pois descreve uma situação como não dinâmica, sem mudança interna e durativa1.

Quanto ao valor modal, estamos perante uma modalidade epistémica com valor de certeza, uma vez que o locutor manifesta, por meio deste enunciado, o seu «grau de certeza/incerteza […] relativamente à verdade da proposição que produz»2. A frase não configura a modalidade deôntica porque, para que esta esteja presente, é necessário que envolva duas entidades, a que dá a permissão ou expressa a obrigação e aquela sobre quem recaem a permissão ou a obrigação3.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 370-371.

2. Ibidem, p. 630.

Pergunta:

Gostaria que me elucidassem sobre a função sintática do constituinte «de sombras» na expressão «lançado sobre o túmulo a cobrir-lhe a memória de sombras». Estou em dúvida entre complemento oblíquo e complemento do nome.

Muito agradecida pela atenção.

Resposta:

O constituinte «de sombras» tem a função de complemento oblíquo.

Este constituinte não desempenha a função de complemento do nome memória porque a sua relação sintática é estabelecida com o verbo e não com este último nome, como se pode observar pela possibilidade de pronominalização do nome:

(1) «Cobrir-lha de sombras.»

Esta operação sintática mostra que «de sombras» não integra o constituinte com a função de complemento direto, tendo, portanto, outra função.

O verbo cobrir tem várias possibilidades sintáticas, que se apresentam de seguida:

(i) pode funcionar como verbo transitivo direto (pedindo um complemento direto):

                (1) «O gelo cobriu a casa.»

(ii) pode funcionar como verbo transitivo direto e indireto (pedindo dois complementos, um direto e outro indireto):

                (2) «Cobriu as mãos ao pai.»

(iii) pode funcionar como transitivo direto e indireto (pedindo dois complementos, um direto e outro oblíquo):

                (3) «Cobriu o chão de flores.»

(iv) pode funcionar como transitivo direto e indireto (pedindo três complementos, um direto, outro indireto e outro oblíquo):

         ...

Pergunta:

Qual a diferença entre paciente e tema na análise semântica da frase?

Resposta:

As designações paciente e tema integram o campo dos estudos do papel temático (ou papel semântico) que abordam as relações de natureza semântica que se estabelecem entre os constituintes que funcionam como argumentos selecionados e o constituinte predicativo que os seleciona. O conjunto de papéis temáticos considerado e inclusive as designações atribuídas a estes papéis temáticos varia de autor para autor.

Nalgumas propostas, paciente, objeto e tema são designações equivalentes para o mesmo papel semântico, noutras há «alguns autores que distinguem Tema de Paciente, reservando o primeiro termo para o papel de entidades que sofrem mudança de lugar ou de posse e o segundo para o papel das entidades que sofrem uma mudança de estado» (Mateus et al., Gramática da língua portuguesa. Caminho, p. 188, nota (17)).

Assim, de acordo com esta última perspetiva, na frase (1) o constituinte «o jovem» tem o papel de tema:

(1) «O jovem correu até à mãe.»

Na frase (2), o constituinte «os meninos» tem o papel de paciente:

(2) «O frio enregelou os meninos

Já Raposo considera que paciente «ocorre frequentemente em frases transitivas com um sujeito agentivo, nas quais se descreve uma ação na qual o agente afeta causalmente uma determinada entidade, que vê alteradas algumas das suas condições físicas, materiais ou abstratas (consoante a natureza da entidade e da ação que a  afeta), i.e., que sofre uma mudança de estado nesses domínios.» (

Pergunta:

Por vezes, é muito difícil a distinção entre o complemento do nome e o modificador do nome.

Ao resolver um exame nacional, deparei-me com a seguinte sequência: «(...) Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões...»

Não entendo o porquê do uso da vírgula pela parte do IAVE, porque se trata de uma relação de autoria, motivo pelo qual teoricamente deveria ser complemento do nome. Podem esclarecer-me?

Obrigado, desde já, pela vossa disponibilidade e idóneo apoio.

Resposta:

É muito pertinente a observação que faz porque, por um lado, por norma, os nomes e seus complementos não se separam por vírgula, como se observa nos exemplos seguintes:

(1) «O pai da Rita»

(2) «A fotografia dos alunos»

Por outro lado, como nos dizem Cunha e Cintra, os constituintes com valor explicativo são isolados por vírgula (cf. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 645). 

Ora, não obstante, é possível construir frases como (3), na qual a oração relativa tem a função de explicar, destacando e recordando entre vírgulas, quem é o autor da obra:

(3) «Os Lusíadas, que são de Luís de Camões, são uma obra do século XVI.»

É evidente que a explicação presente na frase é de natureza retórica, mas não o será noutras situações de obras ou autores menos conhecidos.

Nesta linha de pensamentos, é também aceitável que se use a vírgula na frase apresentada em (4):

(4) «Os Lusíadas, de Luís de Camões, são uma obra do século XVI.»

Nesta frase não se explora uma relação sintático-semântica entre um nome e o constituinte que o completa, mas destaca-se a autoria da obra por meio de um constituinte que é introduzido na frase com um valor explicativo.

Assim sendo, no caso apresentado pelo consulente, é possível o uso da vírgula. Há mesmo autores que o consideram de regra. É o caso de Figueiredo e Figueiredo, que afirmam que a vírgula é obrigatória com «nomes de autores, quando vão pospostos ao título da obra, do artigo1» (

Pergunta:

O gramático Júlio Moreira [1854-1911], nos seus Estudos da língua portuguesa, volume I, pág. 140, alerta-nos para a diferença de registo entre «faz de nós tolos» e «faz-nos de tolos»; pois bem, gostaria de saber que diferença há entre «O Joaquim faz-nos de tolos» e «o Joaquim faz-se de tolo».

Seria correto analisar o verbo fazer nessas frases como transitivo-predicativo, em que os complementos nos e se são complementos diretos e «de tolos» e «de tolo» nos respectivos exemplos são predicativos do complemento direto?

No caso de esses exemplos serem equivalentes, porque é que em Portugal e no Brasil também, mas entre pessoas escolarizadas, se usa o verbo fazer como transitivo direto e indireto em frases como estas?

(1) «O Pedro fez de nós tolos.»

Porque não se diz «Pedro fez-nos de tolos», já que também se diz «O Pedro fez-se de tolo»?

Obrigado.

Resposta:

O verbo fazer com o sentido de «transformar alguém ou algo em alguma coisa» pode ter uma construção enquanto transitivo-predicativo, com um complemento direto e um predicativo do complemento direto, como em (1):

(1) «Queria fazer a Joana uma pessoa responsável.»

Este verbo pode ter também uma construção como transitivo-predicativo, com um predicativo que incide sobre o complemento preposicionado, como acontece em (2):

(2) «Fez da filha uma pessoa responsável.»

Estas possibilidades previstas no Dicionário Houaiss indicam que ambas as possibilidades apresentadas pelo consulente são aceitáveis. Acresce que no Corpus do Português, de Mark Davies, estão presentes as duas possibilidades, embora a construção predicativa ocorra mais frequentemente com complemento preposicionado por de.

A situação que observamos em (2) é um dos casos problemáticos da gramática porque, numa perspetiva tradicional, os gramáticos consideram a existência de dois tipos de predicativo (do sujeito e do complemento direto). Não obstante, em Cunha e Cintra assinala-se já  a possibilidade de um constituinte ter a função de predicativo do complemento indireto, mas defende-se que esta situação ocorre apenas com o verbo chamar (como em «Chamar ao João cruel/ Chamar-lhe cruel») (cf. Nova gramática do português Contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 147). Os autores acrescentam ainda q...