No dia em que o Ciberdúvidas comemora o seu 23.º aniversário, a professora Carla Marques escolheu 23 palavras para demarcar a essência deste projeto, a sua missão e as suas conquistas.
Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.
No dia em que o Ciberdúvidas comemora o seu 23.º aniversário, a professora Carla Marques escolheu 23 palavras para demarcar a essência deste projeto, a sua missão e as suas conquistas.
Escrevi um artigo cujo título é "Conversas Superficiais de Café". Fiquei com dúvidas se o adjectivo[1] deveria ser colocado no fim e se os elementos que formam o substantivo composto deveriam ser separados por hífen.
Obrigado.
[1 N.E. – O consulente parece seguir a ortografia anterior à atualmente vigente.]
A ordem dos constituintes que acompanham o nome depende da intenção do locutor.
No caso em apreço, e segundo a minha interpretação, ambos os constituintes que acompanham o nome podem ser interpretados como tendo uma natureza classificadora, ou seja, não têm valor referencial, mas representam antes um tipo1. Por essa razão, «de café» incide sobre o nome conversas classificando-o e associando-o a um determinado tipo de conversas. Neste caso, «conversas de café» designa o tipo específico de conversas que se têm no café e não noutro local. Já o constituinte adjetival superficiais associa-se ao nome conversas para o relacionar com um tipo específico de conversas (as conversas que não têm grande profundidade). Nesta interpretação, ambos os constituintes se juntam ao nome para o classificar, inserindo as conversas num tipo muito específico.
Coloca-se, agora, a questão da ordem destes constituintes específicos. Ora, em Veloso e Raposo, podemos ler que a sua ordem pode ser determinada pelo foco que se pretende dar a uma dada ideia. Os autores apresentam como exemplo as seguintes expressões:
(1) «plantas tropicais de interior»
(2) «plantas de interior tropicais»2
Em (1), coloca-se o foco em «de interior», ou seja, fala-se de «plantas tropicais» de um tipo específico: são de interior. Em (2), coloca-se o foco em tropicais, ou seja, fala-se de plantas de interior que têm como tipo específico serem tropicais. No fundo, o segundo constituinte classificador introduz uma subespecificação de uma realidade que já estava afunilada pelo primeiro constituinte classificador.
A mesma situação parece estar presente no enunciado apresentado pelo consulente. ...
É admissível usar então com valor de conjunção conclusiva?
«Um homem de muito luxo. Era, então, muito rico.»
A utilização de então como conector de valor conclusivo é aceitável.
Tipicamente, então tem um valor temporal próximo de «nesse momento/nessa altura», como se observa em (1):
(1) «O João começou a ler. Então, tocaram à porta.»
Então pode também ter um valor argumentativo, no qual funciona como um conector conclusivo que pode ser substituído por portanto, como acontece em (2):
(2) «Está a chover. Então, levo guarda-chuva.»
No caso em apreço, o conector então pode também ser substituído por portanto, pelo que tem o mesmo valor conclusivo:
(3) «Um homem de muito luxo. Era, portanto, muito rico.»
Disponha sempre!
Na frase «meticuloso detetive do passado, este homem foi um gigante na construção da nossa identidade», a expressão «do passado» desempenha a função sintática de complemento ou modificador do nome?
Desde já o meu muito obrigada.
O constituinte «do passado» tem a função sintática de modificador do nome restritivo.
Note-se que, habitualmente, os nomes de profissões ou de atividade necessitam de um complemento que especifique essa mesma atividade ou profissão1. É o caso, por exemplo, de «porteiro de hotel». Todavia, o nome detetive, em particular, não parece incluir-se neste grupo2, pois parece não existir distinção entre tipos de detetive. Assim, o nome detetive será um nome autónomo, ou seja, não precisa de se relacionar com um constituinte que completar o seu sentido. Não obstante o que ficou dito, o grupo preposicional «do passado» não constitui uma especificação de tipo de profissão, pelo que, em qualquer caso, terá a função de modificador do nome restritivo, pois, ao juntar-se ao nome, introduz-lhe uma propriedade adicional, restringindo o seu sentido3.
Disponha sempre!
1. Para mais informações, Cf. Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, pp. 330-340 e Textos relacionados.
2. Esta interpretação está dependente do contexto que nos é dado a conhecer.
3. cf. Peres, in Raposo et al. Gr...
Pode considerar-se que se encontra uma hipálage no seguinte verso de Álvaro de Campos: «Trago o meu tédio e a minha falência fisicamente no pesar-me mais a mala...»?
Grato.
No verso de Álvaro de Campos «Trago o meu tédio e a minha falência fisicamente no pesar-me mais a mala» (pertencente ao poema de Álvaro de Campos “Notas sobre Tavira”) está presente uma hipálage.
A hipálage «consiste na atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionado» (Duarte in E-dicionário de termos literários). Frequentemente, a hipálage configura-se na atribuição de um adjetivo que expressa uma característica moral de um dado sujeito a um objeto. É famosa a construção queirosiana que ilustra este processo, na qual se transfere o atributo pensativo do ser para o cigarro que este fuma:
(1) «Fumando um pensativo cigarro.» (Eça de Queirós, Os Maias.)
No verso em apreço está presente a hipálage, que é construída de forma criativa. As características morais que correspondem à tristeza e à deceção sentidas pelo “eu” poético ao confrontar-se com a vila e com o eu do seu passado são expressas através dos nomes tédio e falência, que constituem um peso de consciência que o poeta transfere para a mala, afirmando que constituem o peso da própria mala. Esta construção acentua o peso que estes sentimentos têm em quem regressa, de mala na mão, e se confronta com a deceção que a própria consciência lhe oferece.
Disponha sempre!
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