Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O verbo constar pode usar-se como sinónimo de compreender na frase «No que consta as atividades do Plano Anual de Atividades, os alunos da turma participaram em todas elas com muito empenho»?

Resposta:

O verbo constar não pode ser usado na frase apresentada com o valor referido. Aliás, não fica clara a intenção da frase («Relativamente às atividades do Plano Anual de Atividades, os alunos participaram em todas elas com muito empenho.» (?)).

O verbo constar pode ter diferentes usos1:

(i) um uso intransitivo, com o sentido de «correr»:

     (1) «A notícia constou por toda a cidade.»

(ii) um uso transitivo indireto, com o sentido de «ser informado»:

     (2) «Constou-lhe que o chefe tinha chegado.»2

(iii) um uso transitivo indireto, com o sentido de «fazer parte de»:

     (3) «Este capítulo consta da sua obra maior.»

(iv) um uso transitivo indireto, com o sentido de «estar mencionado»:

     (4) «O seu nome não consta da lista de inscrito no exame.»

(v) um uso transitivo indireto, com o sentido de «ser composto»:

     (5) «A obra constava de dois poemas e de cinco contos.»

Como se pode observar, o verbo constar usa-se sobretudo como transitivo indireto, não estando previsto, no dicionário consultado, nenhum uso transitivo direto nem nenhum sentido próximo do que se julga que a frase apresentada pretende veicular. Por estas razões, concluímos que o verbo constar não pode ser usado na frase em questão.

Disponha sempre!

 

1. Os sentidos aqui apresentados constam do Dicionário Houaiss.

2. Neste caso, a oração subordinad...

Pergunta:

Tomemos a seguinte hipótese de decassílabo heróico:

«Ora a sua compleição perde fulgor.»

Pergunto se «sua» pode ser considerada uma sílaba métrica, ou seja, pergunto se uma sílaba métrica pode ser composta por duas vogais, de forma a que, apesar de serem da mesma palavra, uma pertença à sílaba tónica e outra não.

Faço notar que sei que a maneira de escandir depende muito dos hábitos de cada poeta. A pergunta que faço é meramente teórica.

Grato desde já pela atenção.

Resposta:

O possessivo sua pode, em contexto poético, ter uma só sílaba métrica. Trata-se de um caso de licença poética, na terminologia de alguns autores. 

A palavra sua tem duas sílabas gramaticais. Todavia, como é sabido, em contexto poético e para efeito da métrica de um verso, nem sempre as sílabas gramaticais correspondem às sílabas métricas. No caso em apreço, transformou-se o hiato existente em sua (su-a) num ditongo, que permite que a palavra se pronuncie com um só sopro de voz (/sua/). Como afirmam Cunha e Cintra, «esta passagem de um hiato a ditongo, por exigência métrica, chama-se sinérese» (Nova gramática do Português Contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 672).

Disponha sempre!

Pergunta:

Solicito que me informem qual das versões, do parágrafo que se segue, está correta.

Muito obrigado.

Versão A:

No quarto ponto da ordem de trabalhos, outros assuntos, a presidente da reunião disse que os diretores de turma deveriam, dentro do prazo que considerassem razoável, tendo em conta as especificidades das turmas, proceder à eleição dos delegados e subdelegados de turma. Deveriam, também, reunir[-se] com os encarregados de educação, até quatro de outubro, convocando-os através da caderneta do aluno. Nessas reuniões, deveriam prestar informações sobre a turma, e funcionamento da escola, nomeadamente, horário e professores da turma, horário de atendimento do diretor de turma, apoios, clubes e projetos, ocupação plena dos tempos escolares, projeto de educação para a sexualidade, plano de turma, regras e procedimentos a cumprir. Era importante, também, reforçar, junto dos pais a necessidade de estes alertarem os respetivos educandos para a importância do seu bom comportamento na escola. Nas mesmas reuniões deveria, ainda, proceder-se à eleição, por voto secreto, dos representantes dos pais e encarregados de educação de cada uma das turmas. Os diretores de turma deveriam, posteriormente, comunicar à direção os nomes dos delegados e subdelegados de turma, assim como os dos representantes dos pais e encarregados de educação, se possível, com a indicação, também, dos respetivos e-mails.

Versão B: No quarto ponto da ordem de trabalhos, outros assuntos, a presidente da reunião disse que os diretores de turma deverão, dentro do prazo que considerassem razoável, tendo em conta as especificidades das turmas, proceder à eleição dos delegados e subdelegados de turma. Deverão, também, reunir[-se] com os encarregados de educação, até quatro de outubro, convocando-os através da caderneta do aluno. Nessas reuniões, deverão prestar informações sobre a turma, e funcionamento da escola, nomeadamente, horário e professores da turma, horário de aten...

Resposta:

Ambas as opções estão corretas. No entanto, estas expressam valores modais distintos.

Na maioria dos casos apresentados no texto em questão, está em causa a construção da modalidade deôntica, isto é, a expressão de um valor de obrigação, que, nos casos em análise, é veiculado por meio do verbo auxiliar modal dever.

Esta expressão da obrigação pode ser traduzida através dos verbos auxiliares ter (de), que expressa uma obrigação mais forte, e dever, que expressa uma obrigação mais fraca, como se observa pelo cotejo das frases (1) e (2)1:

(1) «Tens de vir comigo.»

(2) «Deves vir comigo.»

Quando o verbo auxiliar usado é o dever, é possível reinterpretar a força modal através da modalização do verbo, o que pode ser conseguido através dos tempos e modos verbais. Esta modalização fica clara na diferença entre (3) e (4), frases nas quais o recurso ao imperfeito do indicativo expressa cortesia:

(3) «Quero um copo de água.»

(4) «Queria um copo de água.»

Pergunta:

A frase «os danos devem ser indemnizados» é válida? Deparei-me com ela recentemente e causou-me estranheza, porque penso que quem é indemnizado é "alguém", relativamente a esses danos... e não os próprios danos.

Já agora, reparei que o acordo ortográfico manteve o m no verbo indemnizar, embora, penso eu, quase toda a gente, mesmo em Portugal, diga "indenizar", "indenização"... Alguma razão para não termos adotado a grafia brasileira neste caso?

Resposta:

Atendendo ao significado do verbo indemnizar é expectável que este seja construído com um constituinte com a função semântica de paciente, isto é, um constituinte que seja afetado pela ação do verbo, com o traço [+humano]. Por essa razão, a frase (1) é perfeitamente aceitável:

(1) «A companhia de seguros indemnizou o João.»

ao passo que (2) causará estranheza e (3) não será aceitável:

(2) «?Os jovens decidiram indemnizar os animais.»

(3) «*Os jovens decidiram indemnizar a casa.»

Assim sendo, concordamos com a posição do consulente, uma vez que a frase que apresenta deveria ter uma forma similar à que se propõe em (4):

(4) «Ele deve ser indemnizado pelos danos (sofridos).»

Relativamente à grafia de indemnizar, no ponto 2 da Base IV do

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