Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Quanto à questão formulada por Natanael Estêvão, em 4/3/2022, foi dito, ao final da resposta, que «esta construção será preferencial à que se apresenta na pergunta, pois não causa a estranheza da primeira». A par da estranheza, pergunto: seria a construção também agramatical, configurando uma exceção? Creio ser essa a dúvida de Natanael.

A propósito, nos exemplos dados pelo citado consulente, pode-se também lançar mão do recurso de usar a expressão «o fato de»: «apesar de o homem ter morrido...» (apesar do fato de o homem ter morrido); «o maior problema está em isso fugir do nosso controle (o maior problema está no fato de isso fugir do nosso controle). Portanto, pode-se imaginar uma elipse em todos os casos, contornando as contrações.

Obrigado.

Resposta:

Com efeito, como implicita o consulente, a resposta dada à questão referida não será clara quanto à gramaticalidade da construção em causa, pelo que importa explicitar os passos da análise aí conduzida.

Antes de mais, torna-se claro que uma frase como a que se apresenta em (1) é, de facto, agramatical:

(1) «*Como respondi a a professora tê-las subestimado?»

Esta agramaticalidade advém do facto de ser de regra não proceder à contração da preposição quando esta introduz uma construção com infinitivo. No caso particular da frase (1), esta situação gera a contiguidade da preposição a com o artigo definido a, o que também não é aceitável do ponto de vista gramatical.

Perante o problema que a construção desencadeia, é importante procurar na língua construções que sejam equivalentes e que possam resolver o problema criado pelo encontro da preposição com o artigo no caso concreto da frase em análise. Assim, a frase que propusemos, aqui transcrita em (2), poderá ser vista como uma solução para resolver a questão, pois permite recuperar um constituinte que poderia surgir na frase, assegurando a sua gramaticalidade:

(2) «Como respondi ao facto de a professora as ter subestimado?»

Quando se usa o termo recuperar, estamos a considerar que a própria língua assegura a gramaticalidade das suas construções, possibilitando estruturas corretas, que os falantes poderão adotar ou não.

Como refere o consulente, o constituinte «o facto de» poderia, com efeito, surgir em muitas estruturas com preposição a introduzir construção de infinitivo. Não obstante, não exis...

Pergunta:

A frase «desenhava dragões nas aulas, brincava aos dragões no recreio, lia até adormecer as antigas histórias de dragões» é ou não (e porquê) uma enumeração?

Grata pela vossa atenção.

Resposta:

A enumeração é um recurso expressivo que consiste na «Adição ou inventário de coisas relacionadas entre si, cuja ligação se faz quer por polissíndeto quer por assíndeto.»1. A enumeração é, deste modo, uma listagem que se caracteriza pelo facto de os termos enumerados manterem entre si uma relação semântica (ou seja, enumera-se algo no âmbito de um mesmo tópico) e por pertencerem a uma mesma classe de palavras. Assim, na frase (1), o segmento «maçãs, bananas e uvas» constitui uma enumeração que integra o tópico «frutas compradas», sendo constituído por elementos de uma mesma classe (neste caso, nomes comuns):

(1) «Ele foi ao supermercado e lá comprou maçãs, bananas e uvas.

É também possível uma enumeração por meio de adjetivos, que se relacionam entre si para descrever, por exemplo, o caráter de uma figura, como em (2):

(2) «Ele era simples, simpático, atencioso e sempre disponível

Neste âmbito, é também possível enumerar um conjunto de atos de uma pessoa por meio de verbo, e de verbos inseridos em orações, tal como acontece na frase apresentada pela consulente:

(3) «desenhava dragões nas aulas, brincava aos dragões no recreio, lia até adormecer as antigas histórias de dragões»

Neste segmento de texto poderemos imaginar que a enumeração desenvolve o tópico «atividades diárias» (o contexto esclarece qual o verdadeiro tópico desenvolvido).

Disponha sempre!

 

 1. Ceia, E-dicionário de termos literários

Pergunta:

Gostaria de saber qual o valor aspetual da expressão «para um leitor que venha acompanhando a obra desde os seus primórdios».

Antecipadamente agradeço a vossa ajuda.

Resposta:

Sem outro contexto (que poderia, eventualmente, condicionar a interpretação aqui feita), a expressão veicula um aspeto lexical de evento durativo e um aspeto gramatical de habitualidade.

Do ponto de vista do aspeto lexical, o complexo verbal «venha acompanhando» representa um evento durativo (visto que se trata de uma situação com duração interna), representado com um aspeto continuativo, uma vez que se descreve a situação no seu decurso.

No que se refere ao aspeto gramatical, a interação entre o complexo verbal «venha acompanhando» e o constituinte de valor adverbial «desde os seus primórdios» contribui para a expressão de um valor de habitualidade, que «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»1. Com efeito, a construção da situação permite que se considere a expressão equivalente a «ele é acompanhador da obra», o que confirma a configuração do aspeto habitual.

Disponha sempre!

 

1. Cunha in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 586.

Pergunta:

Gostaria de saber qual a vossa opinião relativamente aos adjetivos educativo e educacional.

Trata-se de sinónimos ou refletem realidades diferentes?

Obrigada!

Resposta:

Segundo o Dicionário Houaiss, educativo é o mesmo que educacional, pelo que ambos são adjetivos que significam «relativo a educação» ou «que contribui para a educação». Também o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea apresenta significados semelhantes para as duas palavras.

Note-se, porém, que os usos parecem ter criado alguma especialização na seleção destes adjetivos: educativo é o adjetivo usado em expressões que definem uma ação política ou didática no âmbito da educação, como são exemplo «política educativa», «sistema educativo», «reforma educativa», «sucesso educativo», «ação educativa», «plano educativo», entre outras; educacional é usado em expressões que não terão, talvez, o grau de cristalização das anteriores, como «objetivo educacional», «processos educacionais».

Disponha sempre!

Pergunta:

A minha questão diz respeito a esta frase encontrada na página 291, linhas 5 e 6, da tradução portuguesa da obra Dracul, de Dacre Stoker e J.D. Barker, publicada pela TopSeller: «Até há instantes, eu tremia furiosamente, mas conseguira, por fim, acalmar.»

Na frase transcrita, o uso do verbo no pretérito-mais-que-perfeito (conseguira) estará correcto?

Não deveria o verbo tremer ter sido conjugado no pretérito-mais-que-perfeito, e o verbo conseguir no pretérito perfeito, uma vez que aquela ação precede temporalmente esta última?

Obrigado, desde já, pela atenção.

Resposta:

Sem outro contexto que possa, eventualmente, interferir na análise aqui proposta, considero que a frase provoca alguma estranheza.

Na frase apresentada, o constituinte «até há instantes» cria um tempo de referência, identificado com o passado, que serve de âncora para o uso do pretérito imperfeito:

(1) «Até há instantes, eu tremia furiosamente»

Em (1), a expressão localiza a situação no passado, estendendo o intervalo de tempo em que ela tem lugar até quase ao momento da enunciação (o presente de quem fala). Para além disso, o imperfeito associa à situação que descreve o valor de duração (ou seja, o locutor tremeu durante algum tempo).

O pretérito mais-que-perfeito, por seu turno, é um tempo que «localiza uma situação no passado relativamente a outra situação também passada, tomada como ponto de referência»1.

Ora, como a ordenação das situações na frase parece corresponder à ideia de que o «conseguir acalmar» é simultâneo ao tremer e prolonga-se para além do fim desta situação, o uso do pretérito mais-que-perfeito não parece justificar-se, porque, na frase (1), «conseguir acalmar» não é anterior a tremer. Por esta razão, seria preferível o uso do pretérito perfeito, que se articula de forma mais clara com o uso do pretérito imperfeito:

(2) «Até há instantes, eu tremia furiosamente, mas consegui, por fim, acalmar.»

Em (2), o constituinte «consegui acalmar» permite fazer coincidir a situação com tremer, prolongando-a para além do seu fim. Para além disso, expressa um valor de situação concluída relativamente ao momento presente.

Disponha sempre!

 

1. Oliveira in Raposo et al.,