Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual a definição/significado dos vocábulos raiva, rancor e ressentimento? Qual a diferença entre eles?

Resposta:

De acordo com o Dicionário Houaiss, raiva, enquanto sentimento, é um «acesso de fúria; arrebatamento violento» ou «sentimento de irritação, agressividade, rancor e/ou frustração, motivados por aborrecimento, injustiça ou rejeição sofridas»; rancor é a «mágoa que se guarda de uma ofensa ou mal que se recebeu; ressentimento» ou «ódio profundo, não expresso»; ressentimento é a «mágoa que se guarda de uma ofensa ou de um mal que se recebeu».

Note-se, porém, que ressentimento pode em certas ocasiões ser usado como sinónimo de rancor, sobretudo se estivermos a falar de uma mágoa mais profunda e duradoura.

Disponha sempre!

Pergunta:

Ensino o Português a Estrangeiros e muitos alunos estão a aprender o conjuntivo. Em todas as gramáticas para este fim, a conjunção se é seguida por um futuro do conjuntivo em situações como a seguinte: «Se não houver ajuda, é/será tudo mais difícil.»

No entanto, ouço repetidamente na televisão o uso do presente do indicativo em situações deste género. Ex: «Se não há coordenação, há de facto mais problemas.»

Estas duas frases estão corretas? Como interpretar isto?

Agradeço antecipadamente a vossa resposta à minha dúvida. Muito obrigada pelo vosso trabalho. Recorro frequentemente à vossa página para esclarecer as minhas dúvidas.

Resposta:

A dúvida apresentada enquadra-se no estudo das oração subordinadas adverbiais condicionais e das leituras que estas permitem.

Como é sabido, estas orações podem veicular diferentes valores: situação factual, situação hipotética ou situação contrafactual/irreal. As diferentes leituras das orações condicionais estão associadas aos tempos e modos verbais utilizados1.

Assim, nas condicionais factuais, usa-se o modo indicativo:

(1) «Se não há coordenação, há de facto mais problemas.»

Nas condicionais hipotéticas, usa-se o pretérito imperfeito ou o futuro do conjuntivo:

(2) «Se não houvesse coordenação, haveria de facto mais problemas.» 

(3) ««Se não houver coordenação, haverá de facto mais problemas.»

Nas condicionais contrafactuais, recorre-se normalmente ao pretérito mais-que-perfeito do conjuntivo:

(4) «Se não tivesse havido coordenação, teria havido de facto mais problemas.»

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento, cf., Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2020 – 2028.

Pergunta:

Sou escritor, verto livros de árabe para português, e às vezes me deparo com situações, como, por exemplo: «eles supõem erroneamente que jamais morrerão!»

A minha questão é como posso discordar? Será que digo: «Sim! Por Deus que vós morrereis»? Ou: «Pois não! Por Deus que vós morrereis»?

E quando posso usar: «pois não!»; «pois sim!»; «claro!»; «sim!»?

Agradeço o que o Ciberdúvidas tem feito para a melhoria do nosso português.

Resposta:

A questão colocada não tem uma resposta simples, pelo que exige alguma reflexão.

Sobretudo quando colocados em início de frase, os advérbios sim e não podem ser usados para confirmar uma afirmação positiva ou negativa feita anteriormente. Assim, o advérbio sim pode confirmar uma afirmação positiva:

(1) «Ele já leu o livro.

          Sim, ele já leu o livro.»

Por seu turno, o advérbio não pode confirmar uma afirmação negativa:

(2) «− Ele ainda não leu o livro.

        − Não, ele ainda não leu o livro.»

A frase apresentada pelo consulente apresenta uma polaridade negativa, pelo que a frase (3) pode ser considerada equivalente a (4):

(3) «Eles supõem erroneamente que jamais morrerão!»

(4) «É mentira que jamais morrerão!»

Visto que a frase apresentada em (3) é composta por duas orações, a subordinante («Eles supõem erroneamente») e a subordinada completiva («que jamais morrerão»), é possível con...

Pergunta:

Desejo saber se é gramaticalmente aceito em Portugal «enquanto me dirigia-lhe».

Sei que é válida a soma de pronomes oblíquos como em «deparou-se-me» ou «agradecer-to-ei», coisa que não é válida no Brasil.

No entanto, a presença de enquanto antes do pronome oblíquo me exige a próclise. Assim, qual das possibilidades é verdadeira?

1. Enquanto lhe dirigia-me.

2. Enquanto lhe me dirigia.

3. Enquanto me lhe dirigia.

4. Enquanto me dirigia-lhe.

5. Enquanto me dirigia a ela.

Felicíssimo pela atenção da equipe do Ciberdúvidas. Sempre me ajudam prontamente quando necessito.

Resposta:

Apenas a oração apresentada em 5. está correta. Vejamos, de seguida, as razões que o justificam.

Quando dois pronomes clíticos coexistem na mesma frase, não é possível colocar um em próclise (antes do verbo) e outro em ênclise (depois do verbo), como se constata nas frase (2) e (3):

(1) «A Rita deu uma flor ao António.»

(2) «*A Rita não lhe deu-a.»

(3) «*A Rita não a deu-lhe.»

Este critério permite, desde logo, rejeitar as orações 1 e 4 apresentadas pelo consulente.

Para além disso, quando formam um grupo, os pronomes clíticos têm uma ordem fixa: «se + pronome clítico dativo + pronome clítico acusativo»1, ou seja, em primeiro lugar coloca-se o pronome se, seguido do pronome com função de complemento indireto e, por fim, o pronome com função de complemento direto, ordem que se ilustra em (4):

(4) «Histórias de lobisomens, ouvia-se-lhas vezes sem conta.»2 (se + lhe + as)

Esta ordem será respeitada caso coexistam apenas dois pronomes:

(5) «A Rita deu-lha.» (lhe + a = pronome dativo + pronome acusativo)

(6) «A boca abriu-se-te de espanto.»2 (se + te = se + pronome dativo)

Por fim, as formas do pronome de primeira e segunda pessoas do singular e do plural (me, te, n...

Os provérbios da guerra
As marcas da guerra na língua

«Também no campo da fraseologia, a guerra deixa as suas impressões. Os provérbios expressam, não raro, um saber secular moldado na experiência de vida do povo», escreve a professora Carla Marques neste apontamento dedicado às influencias da guerra na criação de provérbios.