Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
45K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Nas frases «Nem sempre encontramos quem nos perceba bem» e «Raramente encontramos quem durma menos de 7 horas por noite», as orações subordinadas são substantivas relativas ou substantivas completivas?

Resposta:

Nas frases apresentadas, as orações introduzidas pelo pronome relativo quem são subordinadas substantivas relativas.

Estas orações caracterizam-se por não terem antecedente. Por essa razão comportam-se como um nome/substantivo (daí serem classificadas como substantivas), desempenhando as funções típicas desta classe, como sujeito (1), complemento direto (2) ou complemento indireto (3), por exemplo:

(1) «Quem tudo quer tudo perde.»

(2) «Conheço quem chegou

(3) «Telefonei a quem me felicitou

No caso das frases apresentadas, as orações subordinadas substantivas relativas desempenham a função de complemento direto e poderiam ser substituídas por grupos nominais equivalentes, que desempenhariam a mesma função na frase:

(4) «Nem sempre encontramos esta pessoa

(5) «Raramente encontramos esta pessoa

Disponha sempre!

Pergunta:

Por que na frase «O horror da cena atraía os olhos, mas eu os desviava, talvez pensando assim: tudo desaparece, tudo é fantasia» possui aposto explicativo?

Isto é, «tudo desaparece, tudo é fantasia» sendo aposto de «assim»?

Não deveria ser considerado como objeto direto, uma vez que «assim» é adjunto adverbial, ou seja, termo acessório?

Ou será que é porque o «assim» é um termo catafórico que introduz um aposto? Se sim, quais seriam os termos catafóricos? Pensei que seriam só os pronomes demonstrativos.

Resposta:

A relação que se estabelece nesta frase ocorre no contexto das dependências anafóricas no plano do texto e não no plano estritamente sintático, que tem lugar apenas no interior da frase. 

Neste caso, o advérbio assim assume-se como uma forma que não tem um conteúdo referencial próprio (como acontece com os pronomes de 3.ª pessoa, por exemplo) e que, por essa razão, aponta para expressões que, por seu turno, possuem esse conteúdo referencial próprio. É o que acontece em frases como (1), onde o pronome o remete para a expressão referencial «o João» e assume o seu significado:

(1) «Eu encontrei o João. Vi-o na biblioteca.»

Neste tipo de relações, diz-se que o pronome o é anafórico e depende referencialmente da expressão que surge antes.

É possível também existir uma dependência referencial relativamente a um elemento que surge depois na frase, como em (2):

(2) «Vi-o. Era o João

Neste caso, diz-se que o pronome o é catafórico, uma vez que remete para uma expressão referencial que surge depois na frase.

No caso da frase apresentada, o mesmo acontece com o advérbio assim, que remete para duas orações que surgem depois na linearidade da frase: «tudo desaparece» e «tudo é fantasia».

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase seguinte, qual é o significado de «era ver» no começo da frase?

Podia dar-me mais exemplos dessa combinação de verbo ser e ver?

«Era ver os espanhóis todos na grande risota, alguns a mandarem umas bocas, como "limpaste o rabo, pá?".»

Muito obrigado.

Resposta:

A estrutura «era ver» usa-se sobretudo na modalidade oral com uma intenção enfática que tem a intenção de destacar a situação que se descreve após a construção.

Pode considerar-se que a expressão equivale a «É um espanto ver x» ou «Preste-se atenção a x». A construção também se associa, por vezes, à apresentação de uma consequência de algo que ficou expresso anteriormente.

Esta construção identifica-se em situações de comunicação atuais, mas também é possível assinalar a sua presença em textos literários representativos de outras fases da língua. Deixamos alguns exemplos extraídos do Corpus do Português, de Mark Davies:

(1) «Era ver de manhã, por todos os carreiros, estradas e carris que dão para o campo, mulheres e rapazes de saco debaixo do braço à procura do sustento do dia.» (Alves Redol, Fanga, 1943)

(2) «É ver os mais sólidos e lúcidos indivíduos chegarem ao homicídio, a negarem pai e mãe, a desconherem os filhos ou a desfazerem vidas laboriosamente construídas movidos por impulsos incontroláveis.» (Rita Ferro, Por tudo e por nada: crónicas, 1994)

(3) «É ver o que aconteceu com a Laurinda.» (Alberto Lopes,

Eleições
Dos sentidos aos atos

Numa altura em que as eleições antecipadas se aproximam em Portugal, a palavra eleição foi a escolhida para a crónica da professora Carla Marques, no programa Páginas de Português, da Antena 2 (dia 9 de janeiro de 2022).

Pergunta:

Gostaria de saber se na frase seguinte estamos perante modalidade epistémica ou apreciativa:

«Algumas das linhas mais intrigantes de Fernando Pessoa encontram-se neste livro.»

Resposta:

Podemos considerar que na frase apresentada se veicula a modalidade apreciativa.

A modalidade apreciativa expressa um juízo de valor, uma apreciação sobre um enunciado já dado como válido.

Existem muitos processos de expressar a modalidade apreciativa1. Entre eles podemos destacar o uso de advérbios modalizadores (1), de construções de tipo impessoal (2), de léxico valorativo (3)

(1)    «Felizmente, estas linhas são de Fernando Pessoa.»

(2)    «Foi bom que tivesses trazido esse livro de Fernando Pessoa.»

(3)    «Este livro de Pessoa é extraordinário.» 

Neste âmbito, podemos considerar que na frase apresentada o adjetivo intrigantes veicula uma avaliação do locutor relativamente às linhas de Pessoa que se encontram no livro em questão.

Disponha sempre!

 

1. A este propósito leia-se, por exemplo, Maria Henriqueta Costa Campos, “Gramática e construção da significação” in Actas do Colóquio A Linguística na Formação de Prof...