Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tenho uma dúvida em relação à seguinte função sintática do constituinte «em Belém» na seguinte frase:

«O Mosteiro de Santa Maria da Feira, em Belém, é mais conhecido por Mosteiro dos Jerónimos.»

Modificador de nome, certo?

A expressão «em Belém» equivalerá a «que é de Belém»? Equivalerá a «localizado em Belém»? Não me parece que faça sentido quando movida na frase.

Obrigado pela vossa paciência e dedicação.

Resposta:

Com efeito, o constituinte «em Belém» desempenha a função sintática de modificador do nome apositivo.

Os modificadores do nome têm a função de «introduzir propriedades adicionais na denotação de um nome, ou na denotação de um nome combinado com o seu complemento, restringindo o seu sentido e dando-lhe maior precisão»1. Estes podem ter naturezas diversas: adjetivos, orações relativas ou grupos preposicionais. Neste último caso, os constituintes são tipicamente introduzidos pela preposição de, mas, em diversas situações, assinalamos a presença da preposição em.

No caso em apreço, estamos perante um constituinte que incide sobre o grupo nominal «O Mosteiro de Santa Maria da Feira», razão pela qual não pode ser deslocado para outro espaço da frase, sob pena de ou agramaticalidade ou de poder assumir outras funções sintáticas, como se observa na frase (1), na qual o constituinte passa a desempenhar a função de modificador do grupo verbal:

(1) «O Mosteiro de Santa Maria da Feira é mais conhecido, em Belém, por Mosteiro dos Jerónimos.»

Acresce ainda que o modificador «em Belém» incide sobre o grupo nominal com um valor locativo.

Disponha sempre! 

 

1. Raposo e Miguel in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 717.

Pergunta:

Na frase «É como se estivéssemos a mil numa montanha russa», qual a função sintática exercida na frase pelas expressões «a mil» e «numa montanha russa» respetivamente?

Resposta:

A frase apresentada é de interpretação dúbia. Apenas o contexto poderá esclarecer com maior certeza a função sintática dos constituintes em causa.

Assim, por um lado, poderemos considerar que o verbo estar, usado como verbo copulativo, pode «indicar que uma entidade se encontra num determinado estado físico, mental, fisiológico ou social, temporalmente delimitado»1. Considerando que o verbo estar é mobilizado na frase para expressar um estado de uma destas naturezas, o grupo preposicional «a mil» constitui o predicativo que descreve a propriedade que se atribui ao sujeito. Por esta razão, desempenha a função de predicativo do sujeito. Por seu turno, o constituinte «numa montanha russa» desempenha a função de modificador do grupo verbal, uma vez que não assume função predicativa, pelo que não é essencial à frase.

Por outro lado, é possível analisar o verbo estar como um verbo copulativo locativo (que tem um valor espacial), o que implicaria que o locutor pretende afirmar que se encontra numa montanha russa. Nesse caso, seria o constituinte «numa montanha russa» a desempenhar a função de predicativo do sujeito, tendo o constituinte «a mil» a função de modificador do grupo verbal, com o valor de indicação da velocidade da ação. 

A nosso ver, a primeira interpretação será, eventualmente, preferencial dada a ordem de colocação dos constituintes: existirá uma tendência para a colocação do predicativo mais perto do verbo copulativo. 

A diversidade de interpretações aqui avançada mostra, antes de mais, que esta é uma frase cuja análise deve ser evitada em contexto escolar não universitário, sobretudo num quadro de avaliação, atendendo à pluralidade de interpretações que desencadeia. 

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de tirar uma dúvida sobre a construção «lá se vai».

Tal dúvida surgiu a partir da seguinte asserção de Evanildo Bechara, citada abaixo, na obra Lições de Português pela Análise Sintática (p.67, 2018), mais precisamente no tópico sobre verbos impessoais, onde ele diz o seguinte:

«Mestres há, como o Prof. MARTINZ DE AGUIAR (em carta particular), que ensinam que o verbo tem de ir ao plural, concordando com o seu sujeito, sendo o singular um caso de inércia mental, igual a "lá vai os homens". Neste caso o sujeito será: "dois corcundas"; "três moças"; "quatro ladrões"; "quatro irmãs".»

Não conseguindo deslindar satisfatoriamente o que é exposto pelo notório gramático, peço-lhes a mão amiga neste ínclito e iluminado espaço, ao qual sempre acorro.

Desde já muito obrigado.

Resposta:

O excerto apresentado integra o ponto 3, da obra Lições de Português pela Análise Sintática, de Evanildo Bechara, dedicado ao estudo de «Os principais verbos impessoais». Nesta secção, o autor começar por identificar alguns verbos impessoais e associa a este grupo a expressão «era uma vez». De seguida, apresenta alguns exemplos literários de frases iniciadas por «era uma vez». Todos estes casos são analisados como pertencentes à categoria de verbos impessoais, ou seja, de verbos que não têm sujeito.

O Prof. Martinz de Aguiar, na carta referida, vem discordar da interpretação de Bechara, ao defender que as expressões que seguem o verbo são o seu sujeito e que o verbo deve concordar com elas, como deveria acontecer na expressão «lá vai os homens», cuja forma correta será, na sua opinião, «lá vão os homens».

Note-se, no entanto, que Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, já não defende que a expressão «era uma vez» inclui um verbo impessoal: «Com a expressão era uma vez uma princesa, continua o verbo ser como intransitivo e o substantivo seguinte como sujeito; todavia, como diz A.G. Kury, “a atração fortíssima que exerce o numeral uma da locução uma vez”, leva a que o verbo fique no singular ainda quando o sujeito seja um plural: Disse que era uma vez dois (...) compadres, um rico e outro pobre [CC.1, 31].» (pp. 453-454)

Esta diversidade de análise explica-se pelo facto de a interpretação de estruturas como as que se encontram em causa dar azo a interpretações muito diversas. Caberá ao leitor adotar a interpretação que considerar mais justa e pertinente.

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de saber se a expressão «o casal vai ser pai» está correta, embora tenha quase a certeza de que não está.

Muito obrigada.

Resposta:

A expressão apresentada é incorreta.

Quando usado no plural, pais pode ter o significado de «o pai e a mãe» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea), como se observa nas construções seguintes:

(1) «pais biológicos»

(2) «pais legítimos»

(3) «pais adotivos»

Por esta razão, a expressão em análise poderia ser substituída por construções equivalentes que admitam o uso da forma plural pais:

(4) «X e X vão ser pais.»

(5) «Os cônjuges vão ser pais.»

Disponha sempre!

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