Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A definição de dar-se em expressões fixas tais como «dar-se ao trabalho» ou «dar-se ao desfrute» é "Agir de determinada forma ou ter determinado comportamento ou iniciativa" conforme o dicionário Priberam (acepção #59).

Eu estava me perguntando se dar-se construído sem (a)o em expressões idiomáticas como «dar-se conta de» ou «dar-se pressa», «dar-se tom», «dar-se ares de» tem o mesmo significado literal, porque não consegui encontrar uma definição diferente na lista do dicionário.

Obrigado.

Resposta:

 O verbo dar é um verbo polissémico que tem, portanto, inúmeros significados. Este verbo pode ter um uso pronominal, que, por seu turno, assume também uma grande diversidade de significados. Entre eles, podemos destacar os seguintes «partilhar com os outros afetos, emoções», «ter relações socias, de amizade», «dedicar atenção», «ter determinado comportamento», «adaptar-se» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea), entre muitos outros.

Pelo que ficou dito, não podemos considerar que o significado «agir de determinada forma ou ter determinado comportamento ou iniciativa» seja o significado literal. É antes um significado que se ativa naquelas expressões fixas. Combinando-se com outros itens lexicais, o verbo dar(-se) assume outros significados, como se verifica pelos exemplos seguintes:

(1) «dar-se conta de», que equivale a «perceber», «dar por isso» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea)

(2) «dar ares de» – «ter semelhanças físicas com» (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea)

(3) «dar-se pressa» – «apressar-se» (Dicionário Priberam)

(4) «dar-se tom» – «tomar ares de importância»  (

Pergunta:

O que é mais correto: «desliguei-o um pouco» ou «desliguei-o durante um pouco»?

Obrigado.

Resposta:

Num contexto de maior formalidade, a frase transcrita em (1) não será muito rigorosa:

(1) «Desligue-o um pouco.»

A locução adverbial «um pouco» significa «de modo reduzido», «numa proporção reduzida». Ora, o verbo desligar, pela sua natureza, não é compatível com expressões que referem o grau de uma dada situação, como se verifica nas frases seguintes:

(2) «*Desliguei-o muito.»

(3) «*Desliguei-o bastante.»

(4) «*Desliguei-o ligeiramente.»

Por esta razão, se o que se pretende é indicar que um dado aparelho ficou desligado durante um dado período de tempo, dever-se-á usar a preposição durante que exprime «duração ou permanência de algo num tempo determinado» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Assim sendo, a frase correta será:

(5) «Desliguei-o durante um pouco.»

Não obstante, num contexto informal, a locução «um pouco» é muitas vezes entendida como equivalente a «durante um pouco», o que explica o seu uso corrente com esta significação.

Disponha sempre!

 

*assinala a inaceitabilidade da construção.

Pergunta:

Em resposta de 23 de março de 2007 (https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/era-uma-vez/19978), diz-se que «era uma vez» “pode ser classificada sintacticamente como complemento circunstancial de tempo” e dá como exemplo «Era uma vez um gato que tinha duas botas pretas».

Ora, sendo «que tinha duas botas pretas» uma oração subordinada, se «era uma vez» é complemento, não existe verbo para uma oração subordinante!

Quer-me parecer que mais lógico é considerar «era» núcleo do sintagma verbal, e apenas «uma vez» complemento circunstancial.Se for assim (e também se não for), resta saber a função de «um gato».

Dado que nós também diríamos «era uma vez dois gatos» (e não «eram uma vez dois gatos»), «gato» ou «gatos» pode ser o sujeito?

Ou teremos de admitir que temos aqui um uso de especial de ser equivalente a haver? «Havia uma vez dois gatos» não levanta dúvida nenhuma.

Grato pela vossa atenção e serviço à comunidade.

Resposta:

Parece-nos a análise proposta pelo consulente justa, uma vez que estamos perante um funcionamento particular do verbo ser

O constituinte «era uma vez» é uma expressão fixa com um valor equivalente a “há muito tempo” (Dicionário Houaiss). Não obstante, esta expressão tem a particularidade de ser analisável e de se combinar com diferentes constituintes.

Assim, em «era uma vez», o verbo ser é o verbo nuclear, que aqui funciona como verbo intransitivo, sendo o grupo nominal que o segue o seu sujeito. Por essa razão, nas construções seguintes «um príncipe», «um homem» e «uma aldeia» têm a função de sujeito do verbo ser:

(1) «Era uma vez um príncipe»

(2) «Era uma vez um homem»

(3) «Era uma vez uma aldeia»

Repare-se que esta construção tem, todavia, a particularidade de manter o singular ainda que o sujeito seja plural:

(4) «Era uma vez dois príncipes»

(5) «Era uma vez três homens»

(6) «Era uma vez duas aldeias»

Este facto sintático inusitado é justificado por Bechara, citando A.G. Kury: «a atração fortíssima que exerce o numeral uma da locução uma vez”, leva a que o verbo fique no singular ainda quando o sujeito seja um plural: Disse que era uma vez dois (...) compadres, um rico e outro pobre [CC.1, 31]. Era uma vez três moças muito bonitas e trabalhadeiras [CC.1, 120].»

De acordo com esta análise sintática, a locução adverbial «uma vez» desempenha a função de modificador do grupo verbal (ou de complemento circunstancial)2.

...

Pergunta:

Na frase «Sua obra será sons que se ouvem no papel», que se encontra na tradução de uma obra literária, apontaram um incorreção na concordância verbal, porque o verbo ser deveria concordar com «sons» e não com «obra». É a única concordância possível?

Existem bons gramáticos que apontam como correta a concordância com o sujeito nesse caso?

Podem nos ajudar com essa questão, por favor?

Resposta:

As duas opções são aceitáveis.

Há diversas situações nas quais os verbo ser concorda com o constituinte que se coloca à sua direita, como se sintetiza nesta resposta. Aqui explica-se, em particular, que quando o verbo ser é equivalente a «ser constituído por»1, concorda com o constituinte à direita. Este parece ser o caso da frase apresentada pelo consulente, como se observa em (1)

(1) «Sua obra será constituída por sons que se ouvem no papel.»

Afirma ainda Bechara que «[n]as orações ditas equativas em que com ser se exprime a definição ou a identidade, o verbo, posto entre dois substantivos de números diferentes, concorda em geral com aquele que estiver no plural.»2

Por estas razões, a opção pela flexão no plural do verbo ser encontra-se devidamente justificada, embora constitua uma exceção. No entanto, acrescente-se que Cunha e Cintra3, tratando a questão da concordância do verbo ser quando encontra um constituinte no singular e outro plural, preveem a possibilidade das duas opções, flexão no singular ou no plural, pelo que a opção pelo singular do verbo é igualmente aceitável. 

Disponha sempre!

 

1. cf. também E. Bechara, Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Lucerna, p. 453.

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Natal
De adjetivo a nome próprio

Da origem da palavra Natal à sua transcategorização de adjetivo para nome próprio: sobre estes temas trata a crónica da professora Carla Marques, no programa Páginas de Português, da Antena 2, do dia 12 de dezembro de 2021.