Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
45K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
<i>Saramago</i>
Nome de homem e de planta

O apelido do nobel português da Literatura, Saramago, dá matéria à crónica da professora Carla Marques, que explora a origem silvestre da palavra e os sentidos que Saramago lhe acrescentou, no programa Páginas de Português, da Antena 2, do dia 28 de novembro de 2021

Pergunta:

Os conceitos de conotação e denotação integram-se nos conteúdos gramaticais [estudados em Portugal]?

Nos manuais surgem associados a exercícios de gramática, mas tenho algumas dúvidas. Podiam esclarecer-me?

Muito obrigada.

Resposta:

O documento das Aprendizagens Essenciais (AE) para a disciplina de Português não apresenta os conceitos de conotação e denotação como conteúdos explícitos do domínio da gramática em nenhum dos anos de escolaridade. Não obstante, no 4.º ano de escolaridade, prevê a mobilização destes conceitos no âmbito da compreensão do oral, de acordo com a seguinte redação: «Distinguir entre factos e opiniões, informação implícita e explícita, essencial e acessório, denotação e conotação» (p. 6). Já no ensino secundário (AE para 10.º e 11.º anos) prevê-se como ação estratégica a «explicitação de valores semânticos das palavras, tendo em conta os seus contextos de ocorrência no plano diacrónico». Estas aprendizagens / ações estratégicas convocam direta ou indiretamente os conceitos de denotação e conotação. Refira-se ainda que o desenvolvimento das capacidades de leitura no sentido da identificação de sentidos figurados e contextuais é um domínio sempre presente ao longo dos diferentes anos de escolaridade no documento em apreço. Ora, neste âmbito, os conceitos de denotação e conotação poderão revelar-se úteis no sentido da exploração dos valores das palavras.

Pelo exposto, é natural que, ao longo do percurso de aprendizagem, os conceitos de denotação e conotação sejam mobilizados em diferentes domínios do estudo do português. Refira-se ainda que o Dicionário Terminológico, documento que apresenta o referencial terminológico a utilizar na disciplina de português em contexto não universitário inclui os termos em apreço no domínio da semântica lexical.   

Disponha sempre!

Pergunta:

«Prefiro ir a pé à praia» ou «prefiro ir a pé para a praia»?

Qual é correto?

Obrigada

Resposta:

Ambas as construções são possíveis, embora possam veicular sentidos ligeiramente distintos.

De acordo com Celso Luft, a diferença entre «ir a» e «ir para» assenta no seguinte: «ir a um lugar traduz “a idéia de lá não se demorar, de não assentar lá a sua residência, ou de voltar breve” (Aulete); ir para um lugar, quando há ‘‘intuito de lá estabelecer residência ou de lá permanecer mais ou menos tempo” (id.)»1.

Não obstante, no Dicionário Houaiss, as duas construções surgem a par com os seguintes sentidos: «deslocar-se a um lugar sem o propósito de ficar ou de demorar-se no local de destino, ou fazê-lo exatamente com esse propósito». Este segundo registo parece apontar para o facto de os usos terem tendência a esbater a diferença entre o recurso às preposições a e para com o verbo ir.

Refira-se ainda que nas frases apresentadas a seleção da preposição também pode ficar a dever-se a razões fonéticas, uma vez que a opção pela preposição para oferece menores dificuldades articulatórias do que a sequência «aà praia». Assim, a economia articulatória também pode ditar a escolha do falante.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Celso Luft, Dicionário prático de regência verbal. Ática , p. 342.

Pergunta:

Gostaria de saber qual a função sintática do constituinte «na faculdade», na frase «Ele anda na faculdade». Pelo facto de o verbo andar, no contexto, poder ser substituído por estar, deve ser classificado como copulativo?

Antecipadamente, muito obrigado pela resposta.

Resposta:

Com efeito, o verbo andar pode ser usado como verbo copulativo. Este uso ocorre em situações muito particulares, tendo lugar quando o verbo apresenta um estado episódico, que se realiza dentro de um determinado intervalo de tempo1. É o que se verifica em frases como (1) ou (2):

(1) «Desde ontem, ele anda feliz.»

(2) «Ultimamente, ela anda nervosa.»

Não obstante, de acordo com o previsto no Dicionário Terminológico, os verbos copulativos podem também contribuir para a localização espacial do sujeito, em frases como a que se apresenta em (3):

(3) «O livro está aqui.»

Nesta ótica, considerando que o constituinte «na faculdade» contribui para uma localização espacial, é aceitável classificar o verbo andar, presente na frase (4), como copulativo, desempenhando «na faculdade» a função de predicativo do sujeito:

(4) «Ele anda na faculdade

Note-se que Celso Luft afirma que o verbo andar, quando rege a preposição em, é predicativo locativo2 (o mesmo que copulativo locativo), o que permite sustentar a interpretação avançada atrás. 

Não obstante o que ficou dito, é ainda possível avançar a hipótese de a expressão «andar na faculdade» ser uma expressão idiomática, pelo que, sendo fixa, não é analisável3. Neste caso, considerar-se-á que a intenção do falante não passa expressamente por localizar o sujeito num determinado espaço físico.

Disponha sempre!

 <...

Pergunta:

Na frase «siga até à estrada alcatroada», o verbo seguir deve ser considerado principal intransitivo (e «até à estrada alcatroada», modificador do grupo verbal), pois poderíamos dizer «Siga», «Siga depois», «Siga pela estrada alcatroada»?

Muito obrigada.

Resposta:

Na frase apresentada, o verbo seguir é transitivo indireto e «pela estrada alcatroada» ou «até à estrada alcatroada» são constituintes que têm a função de complemento oblíquo.

O verbo seguir pode ser usado como

(i) verbo intransitivo:

     (1) «Ordenou que os trabalhos seguissem.»

(ii) verbo transitivo direto:

     (2) «Ele seguiu os colegas.»

(iii) verbo transitivo indireto:

     (3) «Ele seguiu por aqui.»

     (4) «Ele seguiu (depois) pela estrada alcatroada.»

      (5) «Ele seguiu até à estrada alcatroada.»

Para distinguir os casos em que o verbo está a ser usado como intransitivo daqueles em que surge como transitivo indireto, podemos fazer uso de testes sintáticos que focalizam o verbo e seus complementos. Entre eles, usaremos o teste da construção pseudoclivada. Apliquemo-lo às frases (3) e (4): 

    (3a) «O que ele fez foi seguir por aqui.»

    (3b) «*O que ele fez por aqui foi seguir.»

   ...