Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «este percurso pedestre começa num miradouro», o verbo começar deve ser considerado principal transitivo indireto (e «num miradouro», complemento oblíquo), já que, se disséssemos «este percurso pedestre começa agora», estaríamos a transmitir outra ideia (nesta última frase começar seria verbo principal intransitivo e agora, modificador do grupo verbal)?

Muito obrigada.

Resposta:

A análise proposta pela consulente é correta, dando conta de um comportamento distinto do verbo começar nas duas frases.

O verbo começar pode ter naturezas diversas:

(i) verbo intransitivo:

     (1) «A aula começou.»

(ii) verbo transitivo direto:

     (2) «O João começou o trabalho.»

(iii) verbo transitivo indireto:

      (3) «O trabalho começa na página dois.»

Para identificar os complementos do verbo, distinguindo-os dos modificadores, podemos fazer uso de dois testes sintáticos: o teste da estrutura pseudoclivada e o teste de clivagem. Estes têm como objetivo separar o modificador do verbo e seus complementos. Apliquemo-los às frases apresentadas pela consulente.

(i) Teste da estrutura pseudoclivada:

    (4) «O que este percurso pedestre faz é começar num miradouro.»

    (4a) «*O que este percurso pedestre faz num miradouro é começar.»          

  ...

Pergunta:

Na loja online onde trabalho estão sempre a usar expressões como «envios gratuitos para encomendas superiores a x» ou «aproveite já milhares de produtos com envios gratuitos», contudo isto soa-me muito mal.

Acredito que não seja errado usar o plural das duas palavras «envios gratuitos», mas soa-me melhor dizer «envio gratuito para encomendas superiores a x» ou «aproveite já milhares de produtos com envio gratuito».

Fui pesquisar grandes marcas na área e maior parte usa as duas palavras, no singular, nestas e em expressões similares a esta. Alguém me pode ajudar neste sentido?

Obrigado

Resposta:

A opção pelo singular ou pelo plural fica dependente da intenção associada à expressão.

O singular designará uma situação única, enquanto o plural descreverá um conjunto de situações.

No contexto apresentado, o mais comum será, com efeito, o recurso ao singular, «envio gratuito», uma vez que, à partida, o cliente fará uma única encomenda e será o envio dessa encomenda singular que será gratuito. O mesmo se aplica à expressão «milhares de produtos com envio gratuito», se o que se pretende afirmar é que cada encomenda feita terá envio gratuito.

Não obstante, se o que se pretende é descrever a empresa como uma entidade que opta por enviar gratuitamente todos os produtos encomendados, poder-se-á optar por uma afirmação como «A empresa faz envios gratuitos a partir de X».

Disponha sempre!

Pergunta:

Conforme a gramática, os verbos repensar e pensar pedem a preposição em:

«Pensei no problema.»

«Repensei no caso.»

Mas tenho visto a omissão da preposição em frases como:

«Vamos repensar o mundo.»

«A iniciativa é repensar o que deve ser mudado.»

«Vamos repensar o nosso vocabulário?»

«É preciso repensar o sistema educacional.»

«É necessário pensar o mundo.»

Então a minha pergunta é: a regência verbal nesses casos está correta, por conta do sentido do verbo repensar nessas frases, ou o correto seria pôr a preposição "em"?

Muito obrigada pela atenção e pelos preciosos esclarecimentos de sempre!

Resposta:

As construções do verbo pensar e seus derivados sem recurso à preposição são possíveis.

O verbo pensar admite vários tipos de uso:

(i) como verbo intransitivo:

     (1) «Penso, logo existo.»

(ii) como verbo transitivo direto:

     (2) «Penso o contrário dele.»

      Segundo Celso Luft, a construção transitiva direta do verbo veicula significados como «avaliar pelo raciocínio», «julgar», «imaginar», «supor»1;

(iii) como verbo transitivo indireto:

     (3) «Penso nesta situação.»

      Luft associa esta construção aos significados “meditar”, “ter na mente” ou “lembrar-se”2.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Celso Luft, Dicionário prático de regência verbal. , p. 398.

2. Id. Ibid.

Pergunta:

Na resposta "Adjetivos qualificativos vs. adjetivos relacionais", Ana Martins afirma que os adjetivos relacionais ocupam posição pós-nominal (depreende-se que seja sempre) e dá como exemplo "monocromático".

Ora, no conhecido filme de animação Madagáscar, um dos pinguins refere-se à zebra como "meu monocromático amigo". Isto estará errado?

Por outro lado, na mesma resposta diz-se que os adjetivos relacionais não são graduáveis. Então, não é correto considerar que um enredo é "kafkianíssimo"?

A resposta citada refere, ainda, que os adjetivos relacionais não podem ocorrer em posição predicativa, o que me espanta, pois é possível dizer que "um jornal é diário ou semanal". Ou não estão os adjetivos diário e semanal, neste caso, em posição predicativa? Finalmente, esclarece-se que os adjetivos relacionais não têm antónimos. No entanto, podemos considerar que policromático é o antónimo de monocromático... ou não?

Não pretendo pôr em causa a resposta fornecida, mas resolver a minha dificuldade em distinguir os adjetivos relacionais dos qualificativos!

Grata pela vossa atenção e parabéns pelo excelente e meritório trabalho!

Resposta:

A resposta dada por Ana Martins aborda apenas as características regulares e típicas do adjetivo relacional, daí não prever exceções ou casos particulares.

Consideremos, agora, os aspetos focados pela consulente:

I. Os adjetivos são graduáveis quando se podem associar a uma escala. Por essa razão, os adjetivos relacionais típicos não variam em grau, uma vez que formam com o nome uma relação fechada que não é suscetível de variar segundo uma escala. Por exemplo, de um polícia não se poderá afirmar que é «muito ou pouco civil». No entanto, em contexto figurados/de natureza estilística, a subclasse pode moldar-se à expressão de sentidos não literais, que se poderão processar através de graduação do adjetivo. Será o que explica a possibilidade de «Enredo kafkianíssimo» ou «uma invasão pouco americana».

II. Geralmente, os adjetivos relacionais não aceitam a posição predicativa. Há, no entanto, exceções, previstas1: 

     (i) o adjetivo relacional pode estar ao serviço de uma construção contrastiva (explícita ou implícita), o que pode acontecer em (1):

          (1) «O jornal é diário (não semanal).»

     (ii) «os adjetivos relacionais formados a partir de outros adjetivos relacionais, como amoral, monocromático ou multirracial, ao contrário das suas bases, aceitam facilmente a função predicativa»2.

III. Tradicionalmente, os adjetivos relacionais não se podem antepo...

Pergunta:

Que preposição é que empregamos em contextos como este:

A obra foi apresentada à época do evento...

A obra foi apresentada na época do evento...

A preposição a ou em?

A minha dúvida dá-se em razão de dizermos «isso deu-se quando? Em 2 de janeiro», por exemplo. Por outro lado, dizemos também «aos 2 de janeiro».

O emprego do a é aí galicismo?

Muito obrigado!

Resposta:

A construção preferida pela norma será «na época de». No entanto, «à época de» também será aceitável.

A preposição utilizada para localizar uma situação num dado intervalo de tempo é tipicamente a preposição em, pelo que a construção apresentada em (1) poderá ser sentida como mais normativa:

(1) «A obra foi apresentada na época do evento.»

Não obstante, a locução «à época» é usada como equivalente de «naquela época», em construções como as que se apresentam de seguida:

(2) «Segundo Décio Freitas em seu livro Palmares: A Guerra dos Escravos: “não é fácil saber de onde foi que Jorge Velho partiu para ir combater Palmares, se de São Paulo ou do Piauí (...) no entanto um memorial dirigido ao rei pela sua viúva e seus oficiais afirma que à época vivia no Piauí” (pg. 144)»1

(3) «Mais de metade da população do concelho é hoje uma população urbana, com expectativas e exigências muito diferentes da população de agricultores e pequenos empregados dos serviços públicos, que caracterizava o concelho à época do 25 de Abril.»2  

Encontramos a construção inclusive em Bechara:

(4) «[…] mas o fato se explica porque tais adjetivos em -ês e -or eram uniformes no português antigo, à época dessas derivações adverbiais.»3

Refira-se, ainda, que a expressão estará alinhada com «ao tempo», locução composta por a + nome, registada por Énio Ramalho, sem qualquer identificação com os galicismos: «tempo, ao: ele estava ao t. exilado em Espanha (naquele tempo); Paris era ao t. o centro cultural da Europa e do mundo; ela era ao t. uma encantadora menina (nessa altura); dout...