Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual é o uso correto na seguinte frase:

«A DGS apelou para a tranquilidade das pessoas que tomaram a vacina», ou «A DGS apelou à tranquilidade das pessoas...»?

Ou, melhor ainda, deveria ser «A DGS apelou às pessoas que tomaram a vacina para se manterem tranquilas»? Parece que há uma fixação com o uso obrigatório do «apelar para», o que nem sempre está correto, certo?

Muito obrigada.

Resposta:

O verbo apelar é alvo de inúmeras controvérsias relacionadas com as preposições que pode reger (como se pode observar nesta resposta).

Pode ser usado com o sentido de «pedir ajuda ou auxílio de alguém para ultrapassar alguma dificuldade. RECORRER A»1.

(1) «Em ocasião de crise é necessário apelar para o esforço de toda a população.»2

Neste uso, segundo o Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Luft, o verbo apelar pode reger tanto a preposição para como a preposição a, como se observa pelos exemplos apresentados pelo autor:

(2) «apelar para os amigos»

(3) «apelar a Deus»

Assim sendo, e pegando nas frases apresentadas pela consulente, se buscarmos uma expressão rigorosa, a forma preferível será:

(4) «A DGS apela para / às pessoas que tomaram a vacina para que mantenham a tranquilidade.»

No entanto, se atentarmos na frase que se apresenta em (1) e que corresponde a (5):

(5) «É necessário apelar a/para toda a população para que se esforce.»

veremos que é possível converter a construção «população para que se esforce» num constituinte nominal que passa a ser argumento do verbo: «o esforço de toda a população». Deste modo, concluímos que a mesma operação de nominalização é possível na frase (4), o que permit...

Pergunta:

Existe alguma gradação de ênfase no uso de parênteses ou travessões no interior de uma frase? Por exemplo:

«Cada cartaz aborda um tipo de flores – a seleção levou em conta a ocorrência e a beleza delas, como as rosas, as margaridas, os crisântemos, as orquídeas – ou outros aspectos como período da floração e formas de polinização.»

Se fossem usados parênteses, seria indiferente?

Agradeço desde já.

Resposta:

As gramáticas consultadas não referem uma hierarquia entre estes sinais de pontuação, assinalam, sim, situações em que estes podem ser usados em alternativa. Assim, segundo, por exemplo, Evanildo Bechara1, pode usar-se vírgula, travessão ou parênteses a delimitar

(i) o aposto (modificador do nome apositivo)

     (1) «O grupo, rapazes e raparigas, chegou.»

     (2) «O grupo  ̶  rapazes e raparigas  ̶  chegou.»

     (3) «O grupo (rapazes e raparigas) chegou.»

(ii) orações ou expressões intercaladas

     (4) «O grupo, perdoem-me a franqueza, era muito fraco.»

     (5) «O grupo  ̶  perdoem-me a franqueza  ̶  era muito fraco.»

   &...

Pergunta:

Nas frases seguintes, qual a função sintática de coitado?

1. Coitado, ele continua muito doente.

2. Ele continua muito doente, coitado.

3. Ele, coitado, continua muito doente.

Obrigado.

Resposta:

O adjetivo coitado tem, nas frases apresentadas, a função de modificador do nome apositivo.

O adjetivo coitado é um adjetivo avaliativo, na medida em que «expressa[m] uma avaliação subjetiva, geralmente da responsabilidade do falante, acerca das entidades referidas pelo sintagma nominal» (Veloso e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1387).

Os adjetivos avaliativos não possuem a capacidade de restringir a significação do nome sobre o qual incidem, pelo que não desempenham a função de modificador do nome restritivo. Assim, uma vez que introduzem na frase um comentário sobre uma dada entidade, desempenham a função de modificador do nome apositivo. Os constituintes que desempenham esta função são dotados de uma maior independência prosódica e sintática, como fica patente no facto de serem destacados por vírgula e pela maior mobilidade que evidenciam. Vejam-se o exemplo apresentado em (1) que coloca em evidência as possibilidades de colocação do adjetivo orgulhosa na frase:

(1) «A rapariga, orgulhosa, foi para casa.»

(1a) «Orgulhosa, a rapariga foi para casa.»

(1b) «A rapariga foi para casa, orgulhosa.»

Esta é uma situação similar à que está presente nas frases apresentadas, pelo que a função de coitado é a de modificador do nome apositivo.

Disponha sempre!

Pergunta:

Para além do valor temporal, locativo e modal, que outros valores pode apresentar o modificador do grupo verbal?

Agradeço desde já a vossa ajuda.

Resposta:

Com efeito, os modificadores do grupo verbal assumem tipicamente os três valores indicados, temporal, locativo ou modal:

(i) valor temporal

     (1) «Eu li o livro ontem

(ii) valor locativo

    (2) «Ele leu o livro na varanda

(iii) valor modal

     (3) «Ele leu o livro calmamente

Não obstante, valores como os que se apresentam de seguida poderão também ser associados ao modificador do grupo verbal:

(iv) valor de finalidade

     (4) «Ele leu o livro para preparar uma apresentação

(v) valor causal

    (5) «Ele leu o livro porque a professora sugeriu

(vi) valor de instrumento

    (6) «Ele destacou passagens do livro com um marcador

(vii) valor de condição

    (7) «Ele deixará de ler o livro se lhe telefonares

Disponha sempre!

Pergunta:

No verso «chegar antes de ti para te ver chegar», do poema "Isto é o amor", de Nuno Júdice, podemos dizer que estamos perante um pleonasmo? Se não, qual o recurso expressivo que poderá estar neste verso?

Obrigada.

Resposta:

Não creio que se possa considerar que estamos em presença de um pleonasmo no verso «chegar antes de ti para te ver chegar», do poema "Isto é o amor", de Nuno Júdice, porque o pleonasmo corresponde à repetição ou ao reforço da mesma ideia (cf. E-Dicionário de Termos Literários), o que não acontece nesta sequência.

Julgo que poderíamos considerar a presença do paralelismo semântico, centrado no verbo chegar, cuja agentividade se atribui ora ao sujeito lírico ora ao interlocutor. Por outro lado, neste excerto também se poderá, eventualmente, identificar um quiasmo, que joga com a inversão da ordem das palavras  entre o verbo chegar e o pronome te/ti, dispondo-os de forma cruzada, o que permite ao sujeito lírico jogar com a identificação do agente da situação, explorando os efeitos daí resultantes.

Disponha sempre!