Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Estudando as conjunções subordinativas (norma culta), me deparo com a seguinte informação: a preposição desde (sem partícula que) está arrolada na listagem de conjunções subordinativas condicionais conforme transcrito abaixo:

se, salvo se, desde que, exceto se, caso, desde, contanto que, sem que, a menos que, uma vez que, sempre que, a não ser que,…

Ainda estranhei a inclusão de sempre que. Será um lapso ou de fato isso existe na língua culta portuguesa?

Gostaria, se possível fosse, de uma orientação da parte do Ciberdúvidas.

Resposta:

Não nos foi possível identificar uma gramática onde desde e «sempre que» fossem associados à construção condicional.

A título de exemplo, refira-se que autores como Evanildo Bechara (Moderna Gramática Portuguesa) ou Cunha e Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo) incluem entre as conjunções subordinativas condicionais típicas a locução «desde que» (seguida de conjuntivo), mas não referem o uso de desde com esse valor. Também Napoleão Mendes de Almeida (Gramática Metódica da Língua Portuguesa) não inclui desde entre as conjunções com este valor. Por outro lado, todos os gramáticos referidos incluem entre as subordinativas temporais a locução «sempre que».

Assim, não sendo apresentados exemplos que possam validar o uso de desde ou de «sempre que» como conjunção / locução conjuncional condicional, considera-se que tipicamente não se incluem entre as conjunções/locuções conjuncionais com este valor.

Disponha sempre!

Pergunta:

Os gramáticos falam de as apositivas poderem ser parafraseadas por coordenação em havendo duas asserções.

Tal juízo abrange ainda as restritivas ou é privativo das apositivas?

Muito obrigado!

Resposta:

 De acordo com alguns quadros gramaticais, a aproximação entre orações relativas e coordenação corresponde a uma possível equivalência semântica que se aplica apenas às apositivas.

Com efeito, alguns gramáticos estabelecem uma proximidade entre as orações subordinadas adjetivas relativas apositivas (explicativas) e a coordenação1. Esta equivalência processa-se sobretudo no plano semântico e discursivo (e não no plano sintático).

Na Gramática do Português, coordenada por Eduardo Raposo, analisam-se as relativas apositivas do ponto de vista da distribuição da informação na frase. Relativamente a este aspeto, afirma-se: «Na interação discursiva, a informação divide-se em dois grandes tipos de unidades. Por um lado, existe informação partilhada pelos interlocutores […]. Por outro lado, existe informação nova que se quer fornecer ao interlocutor» (Veloso in ibid., p. 2112, nota 18). É neste quadro que as relativas apositivas são vistas como trazendo informação nova à frase, o que leva a que se considere que estas constituem um comentário (ou seja, introduzem informação nova) ao lado do predicado. Assim, numa frase como (1), constituem comentário tanto a oração relativa («que tiveram uma longa jornada») como o predicado («foram descansar»):

(1) «Os trabalhadores, que tiveram uma longa jornada, foram descansar.»

Esta abordagem semântico-discursiva permite aproximar as apositivas da coordenação como equivalentes: «É esta equivalência entre a oração relativa apositiva e o predicado, ambos comentários, que permite que os dois sejam coordenados (enquanto predicados) numa frase equivalente àquela em que ocorre um deles como oração relativa apositiva» (id., ibid., p. 3113, nota 18).

Neste mesmo plano de análise relacion...

Pergunta:

«Quem se humilha será exaltado.»

Existe ambiguidade na frase acima, desde que consideremos o verbo humilhar-se como pronominal ou como estando na voz passiva pronominal?

«Humilhou-se» ou «foi humilhado»?

Obrigado.

Resposta:

Com efeito, a frase apresentada pode gerar uma interpretação ambígua.

Por um lado, poderemos estar perante um verbo de natureza pronominal. Neste caso, o pronome se é um pronome reflexo que toma como antecedente o pronome Quem, indicando que o agente e paciente da situação descrita por humilhar corresponde à mesma entidade (=«Aquele que se humilha a si próprio vai ser exaltado / Ele será exaltado»). No plano sintático, Quem tem a função de sujeito do verbo humilhar e se a de complemento direto. 

Por outro lado, a frase pode corresponder a uma passiva reflexa (ou frase passiva pronominal)1. Nesta situação, o pronome se impede o aparecimento de um constituinte com a função complemento agente da passiva, o que traz à frase uma interpretação de agente indefinido. Neste caso, o pronome Quem é sujeito de «será exaltado», sendo o constituinte «Quem será exaltado» o sujeito gramatical de «humilha-se» (=«Alguém humilha aquele que vai ser exaltado / Ele humilha-se / Ele é humilhado»).

Não obstante, a leitura preferencial parece ser a que se apresenta em primeiro lugar, atendendo à posição dos constituintes na frase, pois a colocação do pronome Quem em início de frase apontará para o facto de este ser sujeito de «humilha-se».

Disponha sempre!

 

1. Para um maior aprofundamento, cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 390 – 394.

Pergunta:

Em geral, gostaria de saber quando é possível substituir o Infinitivo Composto pelo Infinitivo Simples, mantendo o sentido da frase.

Sei que esta pergunta já foi respondida antes no Ciberdúvidas: «Trata-se da possibilidade da substituição de uma forma pela outra– de "intercambialidade", como se sugere na pergunta –,sem incorrer em incorreção ou alteração significativa no significado da frase. O infinitivo simples (IS) pode substituir o infinitivo composto (IC), mas a inversa não é sempre possível.»

No entanto, há casos em que me parece que a substituição do Infinitivo Composto pelo Infinitivo Pessoal altera o sentido da frase, ou cria, até, frases agramaticais (26). Fico por isso na dúvida se a resposta do Ciberdúvidas que transcrevi tinha um caráter geral. Tinha?

No caso concreto das frases 1 a 4, penso que 1 e 2 têm sentidos semelhantes, mas 3 e 4 não. Qual é a razão para nos casos 1 e 2 ser possível fazer a substituição (caso seja) e nos casos 3 e 4 não (caso não seja)?

(1) Foi bom termos tido essa reunião. (2) Foi bom termos essa reunião.

(3) É bom termos tido essa reunião. (4) É bom termos essa reunião.

Quanto aos seguintes pares de frases, consideram que têm o mesmo sentido? Quais são as regras que permitem (ou não) realizar a substituição de um tempo por outro?

(5) Espero desligar o gás. (6) Espero ter desligado o gás.

(7)No caso de não poderes vir, telefona-me. (8)No caso de não teres podido vir, telefona-me.

(9) Até ele ficar bem, não me irei embora. (10) Até ele ter ficado bem, não me irei embora.

(11) Em vez de terem ido ao mercado, podiam ter ido à praia. (12) Em vez de irem ao mercado, podiam ter ido à praia.

(13) Depois de acabares os trabalhos de casa, podemos ver televisão. (14) Depois de teres acabado os ...

Resposta:

A equivalência entre o infinitivo simples e o infinitivo composto verifica-se, nalgumas situações (cf. esta resposta). Todavia, esta equivalência não se aplica a todas as situações de uso, pelo que é necessário reconhecer algumas características distintivas das duas formas.

O infinitivo simples, por si só, não «contribui para a determinação do valor temporal das orações em que ocorre. Com o infinitivo simples, este valor depende do tipo semântico do verbo da oração principal» (Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 547)

Assim, o infinitivo precisa de um tempo de referência para determinar o seu valor temporal. Entre estas referências, poderemos destacar as seguintes:

(i) o valor temporal do infinitivo simples coincide com o tempo da enunciação:

    (1) «Apesar de terem muito dinheiro, são discretos.»

Nesta frase, o uso do infinitivo simples contribui também para se estabelecer um valor aspetual de habitualidade, ou seja, de situação que se repete. Este valor também pode estar presente em frases como (2), embora, neste caso, só o contexto poderá esclarecer se se trata de um evento habitual ou pontual. O infinitivo simples pode também associar-se a uma leitura de valor habitual, como em

    (2) É bom termos essa reunião1.

(ii) o tempo do evento da oração subordinante serve como tempo de referência para definir o va...

Pergunta:

Na frase «[D. Sebastião] Arrastou para a aventura toda a nobreza portuguesa», o verbo arrastar pode ser considerado transitivo direto e indireto, sendo o segmento «para a aventura» um complemento oblíquo?

Agradeço um esclarecimento.

Resposta:

Com efeito, o verbo arrastar pode ser usado como transitivo direto e indireto, selecionando um constituinte com a função de complemento direto e outro com a função de complemento oblíquo1. Neste uso, o verbo arrastar pode reger diferentes preposições, como de, por e para:

(1) «Arrastou o inimigo da floresta até à cidade.

(2) «Arrastou o inimigo pelo chão.»

(3) «Arrastou o inimigo para a praça.»

Assim, no caso da frase apresentada, o constituinte «para a aventura» tem a função de complemento oblíquo, sendo o verbo transitivo direto e indireto.

Disponha sempre!

 

1. Cf., por exemplo, Celso Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal. Ática, 2008.